quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A LESÃO CONTRATUAL SOB A ÓPTICA DA TEORIA DO FATO JURÍDICO


Marcos Ehrhardt Júnior
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Advogado, Vice-Presidente da Escola Superior da Advocacia em Alagoas (ESA/AL). Especialista em Direito Constitucional e Mestrando pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor Substituto de Direito Civil da UFAL, Professor de graduação do CESMAC e FAL, Professor da graduação e pós-graduação da SEUNE. Professor de diversos cursos preparatórios para carreiras jurídicas.
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I. INTRODUÇÃO. II. EVOLUÇÃO DO INSTITUTO DA LESÃO NO DIREITO BRASILEIRO. III. A TEORIA DO FATO JURÍDICO. IV. A LESÃO DISCIPLINADA NO ART. 157 DO CC/02 SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DO FATO JURÍDICO: 4.1 – Necessidade de precisar os elementos constituintes do suporte fático das modalidades de lesão previstas no ordenamento brasileiro. 4.2 – Conseqüências do reconhecimento da invalidade. 4.3 – Aplicação do princípio da conservação dos atos jurídicos. 4.4 – Da desconstituição do negócio, em face da constatação da lesão invalidante. V. CONCLUSÃO.
I. INTRODUÇÃO
Ao desenvolver uma teoria que explica, de modo didático e coerente, o surgimento dos fatos jurídicos e sua atuação no plano da dogmática jurídica, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda lançou luzes sobre temas que há muito ocupam os juristas dedicados ao estudo de uma Teoria Geral do Direito.
A precisão e coerência dos conceitos que apresenta e sua proposta de divisão do estudo do fenômeno jurídico em três dimensões (planos) permite melhor compreensão de diversas vicissitudes das relações negociais que regem a vida em sociedade.
Com o advento da Lei 10.406/02, Novo Código Civil, o ordenamento jurídico pátrio teve reavivada a chama dos mecanismos protectivos da justiça contratual, na medida em que institutos como o abuso de direito, boa-fé objetiva, vedação à onerosidade excessiva e a lesão passaram a ser expressamente disciplinados, inspirando paradigmas de eqüidade e probidade.
No que concerne à lesão, vale anotar que o silêncio da codificação anterior (CC/16) não significava que tal instituto estivesse ausente do ordenamento jurídico brasileiro. Desde a experiência Romana (laesio enormis), passando pelas discussões quando da elaboração do Código de Napoleão e pelas ordenações portuguesas, a lesão sempre teve lugar no pensamento jurídico ocidental. Vale ressaltar que a preocupação com o preço justo e a equidade no trato negocial já ocupavam espaço relevante nas obras jurídicas da Idade Média, conforme evidencia, dentre outras, a obra de São Tomás de Aquino.
Nada obstante, em cada momento histórico o instituto adaptou-se às contingências sócio-jurídico-culturais do período. No Brasil, é a partir do Decreto-Lei n.º 869/39, modificado posteriormente pela lei que tratava de temas afeitos à Economia Popular (Lei n.º 1.521/51) que o instituto ganha contornos dentro do ordenamento e, apesar de ter sido originariamente concebido para a esfera penal, passa a orientar também os civilistas.
A seguir, dispositivos insertos na legislação de defesa do consumidor também se valem da essência do instituto, até que em janeiro de 2003, com a entrada em vigor da novel codificação civil, acrescenta-se a lesão dentre o rol dos vícios de consentimento que maculam o ato jurídico, cuja aplicação às hipóteses fáticas não pode prescindir da observância aos novos princípios do direito contratual, forjados a partir da Carta Política de 1988.
Tal digressão parece afastar o presente trabalho do objeto de preocupação da Teoria Geral do Direito. Entretanto, tal afastamento é apenas aparente. O campo de atuação do instituto da lesão na esfera dos atos jurídicos encontra-se adstrito aos planos da validade e da eficácia, cujas noções repousam tranqüilas no porto seguro da Teoria do Fato Jurídico. Tal posicionamento, contudo, não é compartilhado por parte da doutrina pátria, que, por muitas vezes, trabalha de modo indistinto e confuso as noções de existência, validade e eficácia, o que torna penoso o trabalho diário dos operadores jurídicos.
Não custa lembrar que tradicionalmente, nos cursos de Direto, o estudo das matérias consideradas profissionalizantes é apresentado de modo desconexo com a orientação da Teoria da Ciência do Direito, sobretudo quando professores de orientações acadêmicas diversas passam a tratar de temas sem definir o marco teórico que lastreia sua perspectiva da questão, o que acaba por provocar entre os alunos entendimentos confusos, repletos de imprecisões relativas a aspectos relevantes na sua aplicação no quotidiano negocial.
Desse modo, se considerarmos que o instituto da lesão apresenta-se multifacetado ao longo da evolução da matéria em nossa experiência jurídica, torna-se ainda mais importante estudá-lo sob a perspectiva da Teoria do Fato Jurídico, que por sua precisão e objetividade, permitirá apontarmos os elementos que compõem o suporte fático do referido instituto e suas peculiaridades, para daí melhor compreendermos suas conseqüências.
Neste trabalho busca-se, pois, revisitar conceitos da teoria geral, a partir do instituto da Lesão, distinguindo das demais modalidades de vícios, precisando seus elementos constitutivos e comparando seu tratamento nos diversos diplomas legislativos que cuidam da matéria, de modo a fornecer àqueles que se interessam pelo complexo tema da justiça nas relações contratuais mais uma contribuição visando a aumentar o debate sobre a matéria.
II. EVOLUÇÃO DO INSTITUTO DA LESÃO NO DIREITO BRASILEIRO
Conforme explicitado na introdução, o objetivo deste trabalho é empreender um estudo analítico do instituto da lesão nos contratos, a partir de elementos da Teoria Geral do Direito. Deve-se então iniciar apresentando a evolução histórica da matéria.
A doutrina pátria costuma relacionar de modo didático quatro espécies de lesão, começando com uma referência histórica à experiência do povo romano, que, de acordo com sua filosofia pragmática, tratava a desproporção prejudicial a uma das partes do negócio de modo objetivo, definindo um parâmetro qualitativo (=tarifado) para caracterizar a laesio enormis, qual seja, inquinava-se o contrato quando a desproporção entre as prestações se mostrasse superior à metade do preço considerado justo.
Tal experiência ecoou pela a Idade Média e influenciou os legisladores encarregados da elaboração do Código Civil Francês de 1804, e embora tenha sido prevista na legislação portuguesa aplicável ao Brasil durante a fase colonial, como também objeto da preocupação de Teixeira de Freitas no seu esboço de Código Civil, não foi adotada por Clóvis Beviláqua quando da confecção do CC/16, a despeito de toda a influência que o Código Napoleônico e o BGB alemão exerceram sobre nossa legislação civil anterior.
Sílvio Rodrigues pondera1 que o silêncio do Código Civil de 1916 acerca do tema poderia ser justificado pela índole individualista do mencionado diploma legal. Afinal, dentro do pensamento liberal, dizer “contratual” implicava “dizer justo”, já que o primado da autonomia da vontade, reforçado pelo princípio da força obrigatória dos pactos, afastava o conteúdo do consenso contratual do controle do Estado-juiz.
A segunda espécie de lesão a ser disciplinada na experiência brasileira, é lesão usurária2, também denominada usura real, esta de natureza criminal, o que explica a exigência de elementos de índole subjetiva para sua configuração, em atendimento aos pressupostos adotados pela teoria finalística da ação, utilizada majoritariamente pelos nossos penalistas.
Desse modo, além do elemento qualitativo da desproporção entre as prestações (tarifação em um quinto), havia de estar evidenciada a necessidade, inexperiência ou leviandade da vítima, bem como a demonstração de dolo de aproveitamento da outra parte, isto é consciência do outro figurante acerca da lesão perpetrada. Uma vez comprovada a ocorrência de tais requisitos inquinava-se o ato jurídico de nulidade, em face da ilicitude do objeto, consoante sustenta Caio Mário da Silva Pereira3.
Na seqüência cronológica, torna-se possível reunir elementos através de uma interpretação sistemática de diversos artigos4 da Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, que nos permitem concluir pela adoção pelo CDC do instituto da lesão, só que de modo diverso do previsto na Lei 1.521/51, posto que para a legislação protectiva do consumidor basta constatação da desproporção entre as prestações, para configuração da lesão e a conseqüente decretação da nulidade do contrato.
Registre-se que o montante da desproporção não se encontra predeterminado, ou seja, não há tarifamento. Em face da dinâmica das relações negociais de massa, típicas da sociedade pós-industriais em que vivemos esta parece ser a melhor alternativa de modo a evitar distanciamento da realidade. Ficamos ao prudente arbítrio do juiz a ser motivado em cada caso concreto.
Em janeiro de 2003, entrou em vigor o disposto no art. 157 do Código Civil atual5, que descreve o que a doutrina passou a denominar lesão especial, que da lesão usuária herdou a necessidade da comprovação de condições subjetivas particulares do lesado, a saber: necessidade ou inexperiência; Mas se inspirou no Código de Defesa do Consumidor para exigir elemento objetivo sem tarifação.
Não obstante, distingue-se das duas formas posto que implica em anulabilidade, não devendo tampouco ser confundida com a coação ou com o dolo, conforme demonstraremos mais adiante, após situar tais espécies dentro da Teoria do Fato Jurídico, conforme proposta deste trabalho.
III. A TEORIA DO FATO JURÍDICO
Segundo a doutrina defendida por Pontes de Miranda, os fatos jurídicos originam-se de um suporte fático (após receber a incidência de uma norma jurídica) que podem ser definidos como um fato que por ser considerado relevante para a vida em sociedade, foi objeto de uma norma jurídica cuja incidência ocorre, de modo inesgotável e impositivo sempre que se concretizar no mundo físico.
Assim se descreve a entrada dos fatos naturais dentro do universo jurídico, e se ressalta o viés sócio-cultural do Direito, sendo inevitável traçar um paralelo com a Teoria Tridimensional, desenvolvida por Miguel Reale6, que sustenta ser a norma produto da valoração dos fatos sociais (fato + valor = norma).
Desse momento em diante, ou seja, a partir de sua juridicização, aquele conjunto de fatos adjetivado pela norma, passa a ser considerado de modo autônomo e independente, constituindo uma unidade dentro do tempo e do espaço: o Fato Jurídico; a partir do qual podem ser irradiados os efeitos sociais desejados pela coletividade, ou seja, sua eficácia jurídica, concretizando-se, ou não, as finalidades práticas pretendidas.
Com a juridicização dos elementos nucleares do suporte fático, ingressa-se no Plano da Existência, plano do “ser”, onde apenas se leva em consideração a concreção dos dados fáticos necessários à incidência da norma jurídica. Estamos na porta de entrada do mundo jurídico, onde não há de que se perquirir acerca da sua eficiência, apenas sobre sua suficiência (=existência). Em outros termos, é lícito afirmar que não é nesta dimensão que se analisa a observância do fato jurídico aos requisitos previstos no sistema jurídico7.
Esta verificação é adequada a um segundo momento, quando os fatos jurídicos que apresentam a vontade dos figurantes como elemento nuclear do seu suporte fático passam pelo Plano da Validade. É aqui que se busca garantir a mencionada integridade do sistema jurídico repelindo fatos jurídicos desconformes com suas prescrições.
Logo, torna-se evidente que o problema da validade ultrapassa questões estritamente dogmáticas para assentar no campo da Axiologia Jurídica. Validade então, na forma em comento, é sinônimo de perfeição, adequação ao sistema jurídico. E, neste diapasão, tem-se na invalidade a resposta do sistema – uma forma de sanção – às imperfeições detectadas. Neste sentido, precisa lição de Marcos Bernardes de Mello, in verbis:
A invalidade, em seus diversos graus (=nulidade e anulabilidade) constitui uma sanção que o ordenamento jurídico adota para punir determinadas condutas que implicam contrariedade a direito. [...] Por isso, sempre que há violação de norma cogente há invalidade, desde que ela própria não preveja, especificamente, outra espécie de sanção. Ora, parece claro, se a contrariedade a direito constitui elemento cerne da ilicitude e é também, o fundamento da invalidade dos atos jurídicos, não é possível extrair-se outra conclusão senão a de que o ato jurídico inválido integra o gênero fato ilícito lato sensu.8.
Neste plano se apuram eventuais deficiências nos elementos cerne e completante que integram o núcleo do suporte fático que originou o fato jurídico, pois a não observância de tais estruturas, conforme mencionado, implica necessidade de punir a violação, até como forma de manter o caráter sistemático do Direito.
O já citado Marcos Bernardes de Mello, comentando o plano da validade esclarece que a natureza imputacional própria das normas jurídicas colocam o direito não no plano da causalidade natural (ser), mas sim num plano de validez (dever-ser), que permite ao legislador ter liberdade para disciplinar os defeitos verificados, isto é, as violações ao sistema jurídico do modo que reputar mais adequado9.
Tal peculiaridade torna-se especialmente relevante na seara negocial, já que estamos tratando do interesse das partes contratantes em oposição aos postulados da ordem pública. Explica-se.
No cerne dos fatos jurídicos onde a vontade é elemento essencial (=ato jurídico) percebe-se que a conduta é realizada com o objetivo de obter uma conseqüência vantajosa para quem a pratica. Desse modo, apesar de ocorrer no mundo físico (realidade) a conduta está sujeita a valoração, pois, do ponto de vista jurídico se põe no plano do “dever-ser”, o que permite até “apagá-la” do mundo jurídico em face da não conformidade com o direito posto10.
Neste particular é necessário evitar a confusão doutrinária acerca das noções de ato inválido com ato inexistente. O inválido existe embora se apresente de modo deficiente, como demonstra a necessidade de que o mesmo seja desconstituído quando formado em violação a normas do ordenamento, o que não se verifica com o ato dito “inexistente”.
Tais normas estão relacionadas ao sujeito que manifesta vontade em praticar o ato, ao objeto do ato ou à própria forma de exteriorização de vontade. Estes são os pressupostos de validade a ser considerados pelo operador do Direito.
Deve-se registrar então, que em relação ao instituto da lesão, por exemplo, falta liberdade e/ou espontaneidade em face do contexto fático que determinou tal manifestação de vontade. Em suma, esta-se diante do problema da equidade que reflete no equilíbrio das relações contratuais. O defeito da lesão, portanto, importa na deficiência na consciência da manifestação da vontade e a moralidade do objeto do negócio.
Neste ponto, necessário repisar que existir, valer e ser eficaz devem ser entendidas como situações distintas em que se podem encontrar os fatos jurídicos. O ser válido (ou inválido), assim como o ser eficaz já pressupõe que o fato jurídico exista, apesar da recíproca não seja verdadeira, posto que para existir, “basta a incidência de uma norma sobre seu suporte fático suficientemente composto”.11
Felipe Peixoto Braga Netto, em sua obra intitulada “Teoria dos ilícitos civis” no mesmo sentido afirma que para que um ato jurídico lícito valha, não bastam os requisitos essenciais de existência. Lembra que é necessário que concorram certos atributos de validade, cuja ausência o torna inválido, conquanto existente, para concluir que os atos inválidos funcionam, por vezes como uma espécie de “rede de segurança”, impedindo a eficácia indesejada pelo sistema jurídico12.
Importante também salientar que não se devem confundir as situações descritas acima, já que se passam em planos diferentes. Anote-se que “ser válido” (ou não) e “ser eficaz ou ineficaz” são qualificações atribuídas ao fato jurídico, mas não existe uma relação essencial entre a validade e a eficácia do ato jurídico. Em nosso sistema encontramos tanto atos inválidos que produzem efeitos como ausência de efeitos de atos perfeitamente constituídos (válidos), embora a invalidade seja a causa mais constante de ineficácia.13
IV. A LESÃO DISCIPLINADA NO ART. 157 DO CC/02 SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DO FATO JURÍDICO
4.1 – Necessidade de precisar os elementos constituintes do suporte fático das modalidades de lesão previstas no ordenamento brasileiro.
Da leitura do dispositivo descrito acima, fácil constatar que para a concreção do suporte fático da lesão especial há de se verificar o valor manifestamente desproporcional da contraprestação exigida quando da formalização de ato jurídico que deva ter ocorrido por necessidade ou inexperiência no mundo dos negócios. Neste ponto importante ressaltar que a desproporção deve ser significativa, mas não precisa ser “enorme”, conforme preconizavam os romanos14.
Verificada a ocorrência no mundo físico dos elementos acima listados, forçoso concluir pela incidência do disposto no art. 157 do CC/02 e a juridicização do conjunto fático, sem que seja necessário perscrutar a motivação que levou um dos figurantes ao estado de inferioridade ensejador da invalidação do ato jurídico. Anote-se ainda que diante da disciplina legal torna-se irrelevante a espécie de negócio jurídico pactuada entre os contratantes15.
Ressalte-se que a situação de inferioridade mencionada acima deve ser apreciada em relação ao caso concreto, não se devendo, por conseguinte, considerar a condição econômica anterior das partes. Na verdade, o que se deve ter em conta é que um milionário pode – numa dada situação concreta – estar sendo lesado por alguém de situação econômica inferior. Logo, a desproporção das prestações pactuadas entre os contratantes deve ser aferida no momento da declaração de vontade, posto que necessita ser contemporânea ao negócio para concretizar o suporte fático da lesão16.
Atento a disciplina dos princípios gerais dos contratos deve-se anotar que o presente instituto é inspirado nos princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico das prestações e mitiga o velho princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), consubstanciando-se em verdadeira funcionalização da autonomia privada aos escopos sociais.17
Ressalte-se que é preciso cautela na construção de significado para as expressões “necessidade” e “inexperiência” que atuam como elementos completantes do núcleo do suporte fático da lesão. A referida necessidade transcende o mero caráter econômico, devendo ser entendida como impossibilidade de se evitar a celebração do negócio, inclusive por imperativo de cunho moral. Já a inexperiência aqui abordada leva em consideração as condições pessoais da parte contratante desfavorecida, cabendo ao magistrado, no caso concreto, examinar seu status sócio-cultural.
Enfim, a “necessidade” em análise é a necessidade contratual, e não a insuficiência de meios para promover subsistência própria do lesado ou de sua família. Não pode ser considerada a “alternativa entre a fome e o negócio”18. Tampouco a “inexperiência” deve ser confundida com o erro ou ignorância. Aqui se evidencia a inexperiência contratual, que não pode prescindir do exame da natureza da transação, pois, v.g., pessoa bastante erudita na área da genética pode ser completamente inexperiente no trato de questões que envolve bolsas de valores ou comércio internacional.
Interessante para a compreensão do tema divisão proposta de Fábio Uchoa Coelho19 que sugere separar os vícios de consentimento em dois grupos distintos: vícios (a) internos e (b) externos. A lesão estaria classificada dentro do primeiro grupo, pois o constrangimento à vontade do lesionário não seria imputável à outra parte ou a terceiro eventualmente beneficiado, sustentando ainda o referido professor que a necessidade faz com que a vontade não se manifeste livre enquanto que a inexperiência faz com que a vontade não se manifeste consciente20
Neste ponto há de se destacar também que o dispositivo em análise não contemplou a circunstância fática da leviandade de um dos contratantes como elemento do suporte fático da lesão especial, diferentemente do que fez o legislador da Lei de Economia Popular ao definir os contornos da usura real.
Após análise cuidadosa dos elementos subjetivos integrantes do suporte fático da lesão especial, cumpre indagar se se faz necessária à ciência de tal condição por parte do contratante que se aproveita do negócio para a incidência do disposto no art. 157 do CC/02.
Defendemos que o espírito da novel codificação civil, sob inspiração dos já mencionados princípios da boa-fé objetiva e da equivalência material preocupa-se essencialmente com o acentuado desnível das prestações que acaba por impedir a paridade entre os contratantes, pelo que se afigura correto afirmar que na lesão especial o critério subjetivo é subsidiário ao objetivo21.
Importante anotar que o se exige é o aproveitamento, mas não o dolo de aproveitamento22, o que ressalta a orientação objetiva do instituto. Isso acontece mesmo que o lesionário não tenha consciência da inferioridade do lesado - ou seja, intenção de se aproveitar. Apura-se apenas a circunstância fática do aproveitamento. Desde modo se houver desproporção, ainda que a outra parte esteja de boa-fé é possível a invalidação do negócio23. Sopesadas as circunstâncias fáticas descritas, sua identificação no caso concreto apresenta como conseqüência a possibilidade de reconhecimento da anulabilidade do negócio pactuado.
4.2 – Conseqüências do reconhecimento da invalidade
Apresentados os elementos fáticos que permitem a configuração da lesão no sistema jurídico pátrio em suas diversas espécies, é preciso ter em consideração que o tratamento de cada ordenamento dispensa quanto às conseqüências da decretação da invalidade variam em razão os interesses da política legislativa. Na experiência brasileira, o gênero “invalidade” subdivide-se em duas espécies distintas que refletem o grau de repulsa do sistema ao ato perpetrado.
Para situações mais severas, onde o interesse em jogo é o da própria coletividade, ou seja, onde se violam normas de ordem pública, destina-se a nulidade, que, na maioria dos casos, quando reconhecida impede a produção dos efeitos próprios do ato jurídico (acarreta em sua ineficácia), bem como qualquer tentativa de sanação do vício detectado.
Do outro lado, na anulabilidade o interesse em jogo é privado, ou seja, está adstrito a particulares, tendo em vida que os efeitos são relativos apenas às partes. Neste caso, o sistema admite que tais atos jurídicos, mesmo eivados de defeitos, produzam sua eficácia específica até que sejam (ou não) desconstituídos, o que releva a possibilidade de sua sanação, quer seja pela confirmação ou pelo decurso do tempo24.
Apesar da tentativa de precisar tais conceitos, em geral, torna-se penoso garantir uniformidade de nomenclatura aos mesmos, seja pela forte influência do direito francês – onde tais espécies são denominadas, respectivamente de nulidade absoluta e nulidade relativa – seja pela ausência de rigor técnico dos operadores jurídicos.
Por conseguinte, antes de prosseguirmos com o estudo das conseqüências invalidantes da lesão especial e contrapô-las com os efeitos das demais modalidades, alguns esclarecimentos se fazem adequados para prevenir dificuldades de compreensão.
Não se pode confundir os elementos essenciais que permitem distinguir, em geral, as espécies de invalidade – tais como gravidade do vício, (im)possibilidade de sanação e conseqüências de sua verificação (ineficácia ou eficácia interimística, conforme veremos mais adiante) – , com as pessoas que estariam legitimadas para levar a juízo tais questões. Explique-se.
Ao adotar a terminologia “nulidade absoluta” os doutrinadores franceses partem do pressuposto que em face da gravidade da espécie que denominamos nulidade, qualquer interessado, como também o Ministério Público, pode alegá-la, sendo lícito, inclusive, que o magistrado reconheça ex officio a necessidade de sua decretação. Logo, dentro deste raciocínio, estaríamos diante de espécie de caráter absoluto, já que oponível por todos.
Em sentido oposto, decidiram denominar “de nulidade relativa” aquilo que precisamos como anulabilidade, ao argumento que nestas situações apenas se reconhece legitimação às pessoas que diretamente experimentam as conseqüências indesejáveis do ato viciado. Até porque em tais situações os envolvidos podem desejar apenas a sanação dos vícios detectados, hipótese em que sequer se apagam seus efeitos do ato em questão.
Não se mostra de boa técnica tal formulação, já que cabe ao legislador (e não a doutrina) disciplinar as conseqüências jurídicas aplicáveis aos defeitos detectados nos atos jurídicos, como também definir as pessoas legitimadas para levar o caso à apreciação do Poder Judiciário.
Neste sentido, o simples fato de nosso sistema prever situações de nulidade relacionadas apenas a interesses das partes e, portanto, apenas por elas alegáveis, demonstra que os limites subjetivos da eficácia da validade25, não se adequam para precisar a terminologia doutrinária empregada para definir os conceitos em análise.
Melhor distinguir as espécies de nulidade em sentido próprio, para que ao lado da espécie anulabilidades, passe-se a entender que dentro da noção de nulidade de pleno direito, posto que passíveis de alegação por qualquer interessado e pelo Ministério Público (logo, absolutas) e nulidade dependente de alegação, para os casos onde o vício só possa ser atacado pela(s) pessoa(s) diretamente interessada(s), correspondendo à denominada “nulidade relativa”26.
Em síntese, pelo demonstrado acima, não se deve confundir a espécie anulabilidade com a “nulidade relativa” (=nulidade dependente de alegação), que apenas se aproximam quanto aos limites subjetivos que legitimam sua alegação. Enquanto a primeira permite que o defeito seja sanado, a outra acarreta a impossibilidade de sanação do mesmo e sequer admite sua confirmação, em face da gravidade do interesse violado. Por isso, no que concerne à lesão, o tratamento dispensado pelo Código de Defesa do Consumidor (nulidade) não pode ser confundido com a solução apontada pelo legislador do Código Civil vigente (anulabilidade).
Resta ainda analisar se, no caso da lesão especial, a invalidade se apresenta de modo total ou parcial. Para tanto, há de se observar se é possível excluir a parte invalidade sem descaracterização o suporte fático do negócio. Em caso de resposta afirmativa, em face da disciplina do art. 184 do CC/02, sua ocorrência não prejudicaria na parte válida, aquilo que foi pactuado entre os contratantes.
Ocorre que a mácula do negócio onde se evidencia a lesão especial ocorre na desconsiderável desproporção entre as prestações, logo, o vício está nos elementos completantes do núcleo do suporte fático, donde se concluir que quase sempre estaremos diante de invalidação total do negócio. Além disso, a invalidade em estudo é de cunho substancial (=material), o que acaba dificultando sua sanabilidade na hipótese das partes não chegarem a um acordo.
4.3 – Aplicação do princípio da conservação dos atos jurídicos
Não se pode perder de vista que em face do princípio da conservação dos atos jurídicos, os operadores, mesmo quando colocados frente a defeitos invalidantes devem tentar aproveitar, ao máximo a intenção negocial manifestada pelas partes, evitando que os efeitos práticos desejados sejam perdidos, evitando-se o desperdício da atividade jurídica.
Neste sentido, vale destacar que no caso da lesão especial, o Código Civil determina que não se decrete a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito (§ 2º, Art. 157, CC/02). Tem-se, pois, uma clara opção pela extinção da invalidade em questão, até porque, diferentemente do que ocorre com defeitos que ensejam nulidade, no caso da lesão especial, o contrato celebrado gerou, desde sua conclusão toda sua eficácia jurídica.
Pontes de Miranda, ressaltando o caráter provisório de tal eficácia, a denomina interimística, esclarecendo que perdurará até que o ato seja desconstituído por sentença ou tornar-se-á definitiva após conclusão do lapso decadencial27 sem que a ação de anulação seja proposta28.
De fato, pelo decurso do tempo decai o direito a anulação do ato onde se constatou considerável desproporção entre as prestações. Anote-se que esta desproporção ainda persiste, apenas não mais pode ser alegada pelos contratantes (nem por via de exceção, ex vi do disposto no art. 190 do CC/02), em face da garantia da segurança jurídica.
Em geral, a eliminação da causa invalidante do negócio jurídico anulável opera-se tanto pela sua confirmação como por assentimento posterior, tendo qualquer destas situações efeitos retroativos à data em que se concluiu o negócio. Daí concluir-se ser desnecessária sua repetição, providência apenas essencial quando se estiver diante de casos de nulidade, tal qual se verifica com a lesão no campo das relações de consumo e na Lei de Economia Popular. Nestes casos, deve-se ressaltar que a repetição constitui um novo negócio jurídico, sem qualquer relação com o anteriormente praticado e removido do sistema em face do defeito verificado.
A sanação pela confirmação29 ou por assentimento posterior não deve ser confundida com a convalidação. Esta é decorrência da inércia do legitimado à propositura da ação anulatória, durante determina período ode tempo, enquanto que aquela permite remover o defeito encontrado30.
Dentre as formas de sanação mencionadas, interessa apenas distinguir a confirmação, na medida em que pode ser relacionada ao estudo da lesão especial. Por sua natureza unilateral, basta que o legitimado para propor a ação anulatória confirme o negócio, independentemente da aceitação do outro figurante, para que ocorra, já que estamos diante de manifestação não-receptícia de vontade31.
Ressalte-se que a confirmação pode se operar tanto de forma tácita (basta, v.g., o cumprimento espontâneo da obrigação, desde que a parte que seria prejudicada, tenha ciência do defeito) quanto expressa e reveste-se de irrevogabilidade, muito embora não tenha caráter absoluto, vez que não pode ser exercício em prejuízo de terceiros, ante o disposto no art. 162, CC/02.
Também não parece possível imaginar-se modos de conversão de contratos manifestamente lesivos aos interesses dos consumidores, posto que a conversão, enquanto instituto jurídico, exige que no mesmo suporte fático do ato jurídico inquinado esteja contida a hipótese de incidência normativa de outro negócio considerado válido pelo ordenamento32.
É de se notar também que a conversão não é o caminho adequado se a é intenção atacar os efeitos do ato jurídico nulo ou anulável, já que o instituto não guarda qualquer tipo de relação com os mesmos. Evidente também que a conversão não se presta para tentar “salvar” atos inquinados por defeitos de ilicitude ou impossibilidade do objeto.
Carece também de utilidade prática tratar do instituto da conversão em relação aos vícios que ensejam apenas anulabilidade, até porque, nestes casos a sanação dos mesmos é possível, embora não exista, em tese, nenhum obstáculo para sua utilização.
Só não se deve confundir os institutos. A sanação, ao extirpar o defeito, impõe-se ex novo, experimentando efeitos retro-operantes. Já a conversão não faz desaparecer a invalidade, apenas aproveita dados fáticos aptos para que o resultado prático almejado seja obtido através de outro negócio, contido no anterior.
Esclareça-se que o que foi dito acima sobre sanação e convalidação são possibilidades que no mundo dos fatos ocorrem antes da decisão de submeter o caso a apreciação do judiciário. A confirmação pode se dar de modo espontâneo. A convalidação se opera com o transcurso do tempo anterior a demanda judicial. Em ambos os casos consideram-se a figura da parte lesada, não do lesionário.
Nada obstante, pode ser que o caminho da conservação do negócio não seja o objetivo dos envolvidos, pelo que assume relevo as observações acerca da desconstituição do ato jurídico inválido formuladas a seguir.
4.4 – Da desconstituição do negócio, em face da constatação da lesão invalidante.
Quando um dos figurantes do negócio decide acionar o Judiciário visando à apreciação dos termos do que fora pactuado para se decidir acerca da existência (ou não) de defeito invalidante, verificam-se, em geral, duas espécies de decisão:
a) Pode o magistrado convencer-se da adequação do ato ao sistema jurídico e, neste caso, reconhecer sua validade, tendo sua decisão conteúdo meramente declaratório, constatando-se apenas as qualidades do que fora avençado; ou
b) As circunstâncias fáticas podem desenhar hipótese incompatível com o sistema jurídico, cabendo ao magistrado, por requerimento da parte que interpôs ação de nulidade no modo e tempo devidos, proferir sentença de desconstituição do negócio, cuja eficácia apresenta matiz constitutivo-negativa, na medida em que determina a exclusão do que fora pactuado do mundo do direito.
Não se perca de vista que a desconstituição do ato jurídico eivado do vício da lesão também pode ser obtida incidenter tantum, quando, por exemplo, oposta enquanto exceção numa ação baseada em ato jurídico inválido. De qualquer sorte, importante registrar que a desconstituição do ato jurídico anulável somente pode ocorrer através de um comando judicial.
Quanto à deseficacização, pode-se dizer que o negócio que era, por conseqüência da anulação (ou resolução, rescisão...) deixa de ser no mundo jurídico e, simultaneamente, perde, em regra, toda a eficácia que produziu; os efeitos que dele se irradiaram são desmanchados e devem ser tratados como se nunca houvessem existido. A deseficacização, nessas espécies, é total, repondo-se os figurantes ao estado anterior33.
Perceba-se que situação diferente pode ocorrer em relação ao defeito da lesão descrito no Código de Defesa do Consumidor. Nem sempre se mostra necessária à desconstituição do ato jurídico inquinado de nulidade, pois se entende que os efeitos do ato jurídico nulo são apenas aparentes, porque não existem para o mundo do direito34.
Desse modo, naqueles casos onde não se faz necessário o registro do avençado (ou ainda nas hipóteses onde tal providência ainda não foi efetivada) a desconstituição judicial só se torna essencial se a parte beneficiada insiste em exigir cumprimento do que fora pactuado de modo consideravelmente desproporcional.
Até o momento, podem-se relacionar as seguintes diferenças acerca do instituto da lesão do CDC e a lesão especial introduzida no CC/02. A atribuição da sanção da nulidade no campo das relações de consumo aos negócios praticados de modo considerável e manifestamente desproporcional não permite a sanação do pactuado, restando apenas, se possível, a hipótese da repetição do ato.
A lesão introduzida na novel legislação civilística admite tanto a confirmação (comportamento ativo com objetivo de eliminar o defeito) quanto a convalidação do ato (inércia caducificante). Nesta última espécie considerada, a desconstituição dos efeitos, conforme visto, torna-se providência essencial, já que desde sua constituição irradiam-se efeitos, que embora provisórios (por que interinos), são essencialmente aqueles desejados pelos figurantes do pacto.
Ocorre que da leitura do disposto no parágrafo segundo do art. 157 do Código Civil vigente, parece que a vítima da lesão, ou seja, aquele que por força do pactuado deve suportar a prestação cuja desproporção é considerável, não tem o direito de pleitear a revisão judicial do avençado, apenas requerer sua desconstituição.
Por outro lado, à parte beneficiada (lesionário) caberia a opção de propor a sanação do negócio mediante realinhamento das prestações de modo equânime. Aqui parece evidente a necessidade de uma ponderação das regras. Se o lesado, pode o mais – requerer a desconstituição do negócio – porque não poderia pleitear solução menos gravosa e até mais consentânea com o princípio da conservação dos atos jurídicos ?
Não fosse tudo isso, há de se considerar ainda que como a doutrina ainda assegura vigência ao tradicional princípio da obrigatoriedade dos contratos caso o lesionário deseje manter o negócio, discutindo novas bases, não será lícito ao lesado, autor de eventual ação anulatória, rechaçar tal pedido, impondo unilateralmente o desfazimento do pactuado.
Evidencia-se, neste ponto, um descompasso entre a realidade negocial e o regramento da matéria, o que deve ser resolvido através de um processo interpretativo, que transcende o enunciado estático do dispositivo em questão, afinal, o que se deve entender por norma são os sentidos construídos, mediante interpretação, a partir dos textos normativos. Pela interpretação, ou melhor, pela decisão acerca de qualquer forma interpretativa devemos utilizar – em face dos núcleos de sentido preexistentes – preenchemos os dispositivos com significados35.
Dentro deste norte, parece evidente que a conseqüência estabelecida pelo enunciado do texto normativo pode (e deve) deixar de ser aplicada em face de razões substanciais (até por imperativo constitucional), consideradas pelo aplicador, mediante decisão fundamentada com elementos superiores à própria regra. Tal orientação instiga o intérprete a examinar a razão que fundamenta a própria regra para compreender, restringir ou ampliar seu conteúdo de sentido ou para se justificar seu descumprimento36.
Na se pode no momento atual da experiência jurídica permanecer aplicando dispositivos normativos dentro da perspectiva do “tudo ou nada” de sua aplicação. Deve-se levar em consideração, no momento da interpretação condições e circunstâncias concretas e individuais, o que faz com que a ponderação de fatores variáveis se mostre mais do que necessária, mas essencial37.
Por isso, a melhor solução para o caso em tela, construída sobre uma interpretação de matiz civil-constitucional, é que o lesado tem a faculdade de escolha entre pleitear a revisão judicial do avençado ou requerer o desfazimento do negócio. Só que a segunda alternativa pode ser obstada pelo lesionário, sob forma de exceção, no momento de sua resposta processual, desde que não tente oferecer apenas uma redução de fachada que não se mostre apta a romper com a desproporção antes verificada. Busca-se, desse modo, preservar a base do negócio, seu conteúdo ético-jurídico, afinal, os interesses do outro lado também precisam ser considerados, nem sempre se devendo anular o negócio em razão dos vícios internos do consentimento.
V. CONCLUSÃO
Em que pese forte corrente doutrinária não encontrar diferenças entre o plano da validade e dos efeitos do fato jurídico, demonstrou-se que tal modo de conceber o fenômeno jurídico deve ser estudado e empregado, porquanto útil para explicar o fenômeno em sua totalidade.
O plano da validade atua como um filtro, podendo ser descrito como uma fase de “controle de qualidade” onde se deve perquirir se os elementos constituintes do fato jurídico apresentam defeitos que influem em sua perfeição, isto é, em sua conformidade com o previsto no ordenamento jurídico. A conseqüência desta não adequação aos ditames do ordenamento, como vimos é a sanção da invalidade.
Tal compreensão, aliada a consideração da natureza imputacional e valorativa das normas que conformam este plano, facilita o estudo dos vícios de consentimento previstos na legislação vigente, em especial à compreensão da lesão, dada à diversidade de suportes fáticos descritos pelo sistema. Precisão na definição dos institutos deve ser preocupação de todo operador do direito, transcendendo o campo da teoria geral, embora ali encontre seu nascedouro.
Contudo, tal rigor teórico não pode ser confundido com preciosismo nem com obediência cega a meros enunciados normativos. Demonstrou-se que é possível empreender-se uma interpretação construtiva de significados mais consentâneos com as aspirações e necessidades do cotidiano negocial.
O instituto da lesão cumpre seu papel, sem embargo da necessidade de se formular um raciocínio que confira maior peso aos argumentos relativos à vulnerabilidade de uma das partes, já que atualmente só se podem conceber as prerrogativas individuais quando se mesclam aos objetivos de toda a comunidade.
É preciso deixar de lado o formalismo buscando a “materialização” do direito através da particularização das situações dentro da nova dinâmica das relações sociais focalizando no problema de sua legitimação, que passa pela delimitação do sentido de Justiça.
A Justiça contratual, enquanto código formal, racional e genérico, calcado na noção de igualdade, revela-se insuficiente, uma vez que a preocupação do intérprete e aplicador do direito deve estar voltada para o aspecto material e concreto do conceito, neste sentido, apostamos na compreensão do fenômeno jurídico em planos distintos, mas inter-relacionados, como ponto de partida para enfrentar tais desafios.
1 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, v.1, 2002, p. 226.
2 Art. 4.º, da Lei 1.521/51 - Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária ou real, assim se considerando: (...) b) obter, ou estipular, em qualquer contato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que excede o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
3 A referência ao pensamento do Professor Caio Mário, mais especificamente a seu livro sobre lesão nos contratos, colhe-se em diversos autores citados na bibliografia. A vigência da lesão usurária na Lei de Economia Popular, ainda que concebida para a seara criminal, lançou novas luzes sobre a teoria contratual. Nada obstante, o que se deve ressaltar neste ponto é que seja considerada como causa de nulidade, seja identificada como defeito do negócio, equiparando suas conseqüências ao tratamento previsto para os vícios de consentimento tradicionais (erro, dolo ou coação), o importante é o ingresso da noção do instituto da lesão na seara cível, bem antes de sua positivação no Código Civil, mediante construção doutrinária e jurisprudencial.
4 Art. 6º - São direitos básicos do consumidor: (…) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Art. 39 - É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (…) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. Art. 51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.
5 Art. 157, NCC. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
6 Cf. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 22 ed., 1995, passim.
7 A expressão “sistema jurídico” deve ser aqui entendida entendido como o ordenamento jurídico consistente, posto que purificado, livre de incoerências e aparentes conflitos normativos (antinomias).
8 Teoria do Fato Jurídico, Plano da validade, p. 51/52. Pelo exposto, percebe-se que os efeitos da sanção da invalidade atuam retirando a utilidade pratica das condutas do infrator.
9 Teoria do Fato Jurídico. Plano da Validade, p. 09.
10 MELLO, Marcos Bernardes. Op. Cit., p. 18.
11 MELLO, Marcos Bernardes. op. Cit., p. 12.
12 Cf. Op. Cit. pp. 104-106.
13 MELLO, Marcos Bernardes, p. 13. O estudo do plano da validade toma especial relevo dentro da matéria dos defeitos do negócio jurídico, embora é necessário deixar evidente que a enunciação de princípios gerais nesta seara não se torna factível diante da presença de diversas exceções aos modelos propostos.
14 Também há de se considerar que o lucro move o interesse dos figurantes da relação negocial, sem que a busca pelo mesmo seja sempre considerada imoral ou tenha o condão de inquinar o negócio. Por isso, andou bem o legislador ao deixar para o prudente arbítrio do juiz a consideração acerca da ocorrência ou não de desproporção entre as prestações pactuadas (art. 157, §1.º), ou apenas a ocorrência de um bom negócio, vantajoso para uma das partes. O sistema tarifário adotado na experiência romana e na lei de usura acaba sendo arbitrário na medida de sua inflexibilidade, o que não se coaduna com a realidade social, sobretudo no campo negocial.
15 Parte da doutrina costuma restringir o âmbito de verificação do instituto da lesão a contratos comutativos (bilaterais e onerosos). Contudo, esta não parece ser a melhor orientação. Não vislumbro argumento eficiente para afastar a possibilidade de incidência do disposto no art. 157 sobre contratos aleatórios. Evidente que em tal forma negocial a incerteza quanto às vantagens que podem ser auferidas pode ser considerada elemento estrutural. Contudo, se os riscos forem inexpressivos para um dos contratantes, também restará configurada a lesão.
16 Este parece ser o traço distintivo mais forte entre os institutos a lesão e da onerosidade excessiva, previsto no art. 478 do CC/02. Neste a desproporção ocorre em momento superveniente ao da celebração do contrato, o que permite apenas a revisão do pactuado, mas não sua invalidação.
17 TEPENDINO, Gustavo. citando Ana Luiza Maia Nevares, in Código Civil Interpretado, p. 294.
18 LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado, v. 1, p.441.
19 In Curso de Direito Civil, v. 1, p. 328.
20 Op. Cit. p. 331.
21 LOTUFO, Renan. Op. Cit., p. 442.
22 TEPENDINO, Gustavo. In Código Civil interpretado, p. 295.
23 Trata-se de posicionamento que não é pacífico na doutrina pátria. A esse respeito, ver, dentre outras opiniões dissonantes, Sílvio de Salvo Venosa, Fábio Ulhoa Coelho e Sílvio Rodrigues, nas obras indicadas nas referências bibliográficas.
24 Cf. MELLO, Marcos Bernardes. Op. Cit., p. 61.
25 Idem, p. 63.
26 Idem, ibidem.
27 Vide art. 178 do CC/02 que prescreve prazo de 04 anos para o exercício de tal ação anulatória.
28 MELLO, Marcos Bernardes. Plano da Validade, 228. Cf. Tratado de direito privado, t. IV, p. 48 e seguintes.
29 Não confundir com ratificação, que apenas objetiva integrar ato praticado de modo incompleto e não eliminar defeito existente (Idem, p. 237).
30 Aqui, lapidar a explicação de Marcos Mello contida em sua obra que trata do plano da eficácia: “A confirmação e a sanação de ato anulável não implicam em pós-eficacização, uma vez que sua eficácia já se produziria completamente, embora passível de desconstituição por fora de anulação judicial do ato. Com a confirmação ou sanação apenas se consolidam os efeitos já produzidos; não se irradiam novos efeitos. (...) é possível, no entanto, que norma jurídica posterior altere o conteúdo abstratamente posto de certa relação jurídica, passando os novos conteúdos a compor, modificando, o teor das relações jurídicas já existentes. A nova eficácia atua de imediato, mas, sempre, ex nunc”. (p. 65 e 66)
31 Marcos Bernardes de Mello demonstra que a confirmação não se refere aos efeitos do negócio jurídico anulável, atuando nos planos da existência e da validade, já que os efeitos do negócio em tela já existem, ainda que de modo interino (=eficácia interimística) desde sua conclusão.
32 A conversão, pelo exposto, somente é admissível sem a criação de suporte fático novo, pois o ato a ser “convertido” já deve estar concretizado no ato inválido e deve refletir o mesmo resultado prático almejado pelo ato jurídico anterior (CF. MELLO, Marcos Bernardes. op. cit., p. 253.
33 Cf. MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Eficácia, p. 67. Entretanto se os efeitos são daqueles que, por sua essência, não podem ser desconsiderados, porque impossível de restaurar-se o estado anterior (impossibilidade material), a deseficacização impõe que haja reparação por meio de indenização. (p. 68) Sem embargo, a eficácia jurídica está sujeita a limites que podem resultar, dentre outros fatores, da natureza do próprio fato jurídico, da vontade dos figurantes (=restrições), de expressa disposição de lei ou do âmbito de valência do sistema jurídico em que o fato jurídico foi produzido (p. 224 e seguintes).
34 E se existirem, excepcionalmente, apresentam eficácia putativa, não cabendo destituí-los, porquanto são definitivos.
35 Cf. ÁVILA, Humberto B. Teoria dos Princípios, 4 ed., 2005, p. 38 e seguintes.
36 Idem.
37 Idem, pp. 40 e 41.

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