quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS PENAIS


Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti
Promotora de Justiça de Alagoas - Pós-Graduada em Direito Constitucional pelo Cesmac – Mestre em Direito pela Ufal
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Sumário
1. Introdução. 2. O fato Jurídico. 3. Conceituação de Negócio Jurídico. 4. Espécies e Classes dos Negócios Jurídicos. 5. A Constituição Brasileira e a criação dos Juizados Especiais. 6. Antecedentes Históricos à Lei n. 9.099/95. 7. Competência e composição dos Juizados Especiais. 8. O ilícito criminal. 9. Princípios utilizados nos Juizados Especiais. 10. A composição dos danos civis. 11. A transação penal. 12. A suspensão condicional do processo. 13. Conclusão.
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1. Introdução
O presente trabalho tem como objetivo a análise dos institutos da composição de danos civis, da transação penal e da suspensão condicional do processo como categorias de negócios jurídicos processuais penais.
Num primeiro momento analisaremos a conceituação do fato e negócio jurídicos sob a óptica de Pontes de Miranda e Marcos Bernardes de Mello.
Partindo da premissa de que ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico são situações distintas, analisaremos o negócio jurídico: unilateral, bilateral e plurilateral.
A partir da verificação teórica das classes negociais, demonstraremos os procedimentos da composição de danos, da transação e da suspensão condicional do processo, que foram instituídos no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição Federal e pela Lei n. 9.099/95.
Pretendemos demonstrar que a Lei n. 9.099/95, trouxe um novo modelo de justiça criminal, sobretudo porque regulamentou o rito sumaríssimo para a apuração das infrações de menor potencial ofensivo, instituiu a realização de audiência preliminar para a tentativa de composição civil e de transação penal, possibilitou a suspensão condicional do processo, o julgamento de recursos por turmas recursais de juízes de primeira instância, entre outras relevantíssimas inovações.
Sem pretensão de esgotar o tema, nosso objetivo consiste em demonstrar que a conceituação apresentada pela teoria geral do direito para o negócio jurídico pode ser aplicada à composição de danos civis, à transação penal e à suspensão condicional do processo e que esses institutos, pela sua natureza e requisitos, são exemplos de negócios jurídicos praticados no âmbito criminal.
2. O fato jurídico
No campo da Teoria Geral do Direito é o fato jurídico o tema de maior relevância por várias razões, conforme veremos.
A noção fundamental do direito é a de fato jurídico, depois, a de relação jurídica. O mundo do direito é composto de relações jurídicas, direitos, deveres, obrigações, pretensões, ações, exceções. Também é constituído de conseqüências jurídicas, como os poderes, ônus, atribuições e qualificações que envolvem os homens em suas relações intersubjetivas.
Com a finalidade de organizar a vida em sociedade e, por conseguinte, a conduta humana, o direito valora fatos e, por meio das normas jurídicas, erige à categoria de fatos jurídicos aqueles que têm importância para o relacionamento inter-humano.
Somente o fato que esteja regulado pela norma jurídica pode ser considerado um fato jurídico, ou seja, um fato gerador de direitos, deveres, pretensões, obrigações ou de qualquer outro efeito jurídico.
A constatação de que há fatos relevantes, a que a norma jurídica imputa efeitos no plano do relacionamento inter-humano, e fatos que, considerados irrelevantes, permanecem sem normatização, permite distinguir, dentro do universo dos fatos - o mundo em geral ou mundo fáctico e o mundo jurídico – formado apenas pelos fatos jurídicos.
Os fatos do mundo ou interessam ao direito, ou não interessam. Se interessam, entram no que se chama mundo jurídico e se tornam fatos jurídicos, pela incidência das regras jurídicas. Pontes de Miranda assevera que “por falta de atenção aos dois mundos muitos erros se cometem e, o que é mais grave, se priva a inteligência humana de entender, intuir e dominar o direito”.1
O conceito de fato jurídico é imprescindível para a exata compreensão da ciência do direito, sendo aplicável em todas as áreas do direito, inclusive na esfera penal.
No brocardo latino nullum crimen, nulla poena sine lege estão contidos os elementos da conceituação do fato jurídico na esfera penal. Significa dizer que não se pode considerar um fato como crime (fato jurídico ilícito criminal), nem lhe ser imputada uma pena (conseqüência jurídica), sem que uma norma específica (lei) o defina como crime e apresente a sanção correspondente.
O ato doloso causador de dano ao patrimônio de alguém é um exemplo de fato jurídico ilícito previsto tanto pelas normas cíveis como penais.
Encontramos na obra do professor Marcos Bernardes de Mello o melhor conceito de fato jurídico: “[...] fato que a norma jurídica atribui, especificamente, certas conseqüências jurídicas no relacionamento inter-humano”.2
Não obstante abranger a classificação ponteana acerca dos fatos jurídicos lato sensu, os fatos jurídicos e os atos jurídicos stricto sensu, dentre outros, será a pesquisa centrada nos negócios jurídicos processuais penais.
Destarte, imprescindível se faz a apresentação de sua conceituação, que será objeto do tópico seguinte.
3. Conceituação do Negócio Jurídico
A contribuição científica dos alemães, por meio da Escola Pandectista, no campo da teoria geral foi grandiosa, uma vez que influenciou a ciência jurídica de todos os povos que se filiavam ao direito romano, com exceção da França.
Nesse contexto, o conceito de negócio jurídico foi construído sob a inspiração ideológica do Estado liberal, cuja característica principal consistia na preservação da liberdade individual diante do Estado. Em razão desse fato a doutrina clássica cristalizou o entendimento de que a declaração de vontade era elemento do negócio jurídico em si mesmo.
Posteriormente, sob a influência kelseniana, a vontade negocial foi potencializada em grau tão elevado que atribuiu caráter normativo ao negócio jurídico. Assim, segundo eles, o negócio jurídico criaria normas jurídicas individuais.
Ocorre, que essa definição de negócio jurídico como ato de autonomia da vontade não responde a todos os questionamentos e não serve a todos os exemplos práticos, uma vez que nega um dado essencial caracterizador do fenômeno jurídico – a norma jurídica como delimitadora do mundo jurídico.
Segundo Marcos Bernardes de Mello:
[...] a juridicidade somente existe por força da incidência de norma jurídica sobre os fatos da vida que ela própria define como sendo seu suporte fáctico. Sem a definição normativa não há de falar-se em fato jurídico. Nada no mundo é jurídico por si. Daí, ressalta à evidência que uma exteriorização consciente de vontade somente poderá gerar um negócio jurídico se, estando prevista como suporte fáctico de norma jurídica, recebe sua incidência. Sem a previsão normativa vontade alguma pode ser considerada negócio jurídico; será mero fato da vida, sem relevância jurídica alguma.3
Após analisar os conceitos de negócio jurídico apresentados pela doutrina pátria e alienígena, preferimos aquele apresentado por Marcos Bernardes de Mello, por ser o mais completo e por atender a quaisquer situações possíveis, para quem:
[...] negócio jurídico é o fato jurídico cujo elemento nuclear do suporte fáctico consiste em manifestação ou declaração consciente de vontade, em relação à qual o sistema jurídico faculta às pessoas, dentro de limites predeterminados e de amplitude vária, o poder de escolha de categoria jurídica e de estruturação do conteúdo eficacial das relações jurídicas respectivas, quanto ao seu surgimento, permanência e intensidade no mundo jurídico.4
Daí porque optamos pela definição de negócio jurídico acima, por corroborar o entendimento do citado autor, de que no negócio jurídico a demonstração da vontade tem a função de compor o seu suporte fáctico, jamais podendo ela própria ser considerada o negócio jurídico.
A vontade somente tem importância no mundo jurídico se prevista como suporte fáctico de alguma norma jurídica. A vontade não constitui, por si só o negócio jurídico, mas necessita que a norma jurídica a transforme, juntamente com os demais elementos por ela previstos como necessários, em fato jurídico.
Cumpre salientar que sem a incidência da norma a vontade não entrará no mundo jurídico e, portanto, não há como se falar em negócio jurídico ou qualquer outra espécie de fato jurídico.
Importante ressaltar que o ato jurídico stricto sensu e o negócio jurídico são situações jurídicas distintas, senão vejamos.
O ato jurídico é um fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fáctico a manifestação ou declaração unilateral de vontade, porém seus efeitos são prefixados pelas normas jurídicas e não cabe à pessoa qualquer escolha da categoria jurídica ou da estruturação do conteúdo das relações jurídicas. Como exemplo, temos o reconhecimento da filiação não resultante de casamento. Nessa declaração, não há qualquer dose de escolha de categoria jurídica, cabendo ao genitor a prática do ato do reconhecimento, apenas. Por isso, não é possível fazer-se o reconhecimento sob condição, ou a termo, ou com encargos.
No negócio jurídico a vontade é manifestada para compor o suporte fáctico de determinada categoria jurídica, a sua escolha, com o fim de obter efeitos jurídicos que podem ser determinados pelo sistema ou manifestados livremente por cada um, o que não ocorre com o ato jurídico stricto sensu.
No negócio jurídico a vontade não cria efeitos, uma vez que eles são definidos pelo próprio ordenamento, estabelecendo o campo de atuação da vontade individual. Logo, não há efeito jurídico ex voluntate. Todos são ex lege, no sentido de serem atribuídos pela norma jurídica.
À vontade negocial o sistema jurídico prescreve limites relativos à própria manifestação de vontade, permitindo-a ou proibindo-a e ao seu conteúdo, quando admitida.
Depreende-se daí que nem toda manifestação de vontade pode ser aceita como negocial, ou seja, capaz de produzir negócio jurídico. Não há um caráter absoluto no poder de auto-regulamentação da vontade, o direito estabelece pressupostos que devem ser atendidos para que a vontade possa entrar no mundo jurídico como negócio jurídico.
A indeterminação das normas jurídicas está relacionada com a maior ou menor especificidade de suas disposições, quando maior a indeterminação das normas jurídicas, maior a autonomia da vontade e, inversamente, quanto menor a indeterminação, menor a autonomia.
Havendo indeterminação, o suporte fáctico é até certo ponto livre às pessoas, desde que esteja em consonância com o sistema jurídico vigente, não ficando limitadas a tipos negociais específicos. A vontade negocial, assim, só tem poder de escolha dentro dos limites traçados pelo ordenamento jurídico, não sendo livre e muito menos absoluta como queriam os Pandectistas.
Segundo Pontes de Miranda: “A falta de vontade de negócio jurídico exclui a existência da declaração de vontade ou da manifestação de vontade (= ato adeclarativo) para compor suporte fático do negócio jurídico: não há negócio jurídico.”5
Na esfera criminal, por meio da incidência da norma jurídica reguladora da matéria (Lei n. 9.099/95) e dentro dos limites por ela traçados, há possibilidade de se realizar negócios jurídicos, por meio dos institutos da composição de danos civis, da transação penal e da suspensão condicional do processo, sendo o elemento volitivo indispensável para a sua validade.
Feitas essas considerações acerca da conceituação do negócio jurídico, importante se faz uma análise das espécies e classes de negócios jurídicos existentes no nosso ordenamento jurídico, a fim de tratar especificamente do tema dessa monografia, qual seja, do negócio jurídico processual penal.
4. Espécies e Classes dos Negócios Jurídicos
Os contratos são negócios jurídicos por excelência, mas existem outros tipos de negócios jurídicos civis, como o testamento, a constituição de condomínio, de sociedade etc.
No tocante ao negócio jurídico processual penal, podemos elencar a composição de danos civis, a transação penal e a suspensão condicional do processo.
Os negócios jurídicos são classificados segundo vários critérios, levando em conta algumas características que se apresentam quando da sua utilização prática. Enumeraremos apenas algumas de suas classes, que nos parecem importantes para o entendimento do negócio jurídico.
Há negócios jurídicos unilaterais, que se constituem de uma única manifestação de vontade, que para existirem basta a manifestação de vontade suficiente à composição do suporte fáctico e que estejam concretizados todos os elementos completantes do suporte fáctico. Como por exemplo, no testamento, não basta que a pessoa exteriorize sua vontade dispondo sobre seus bens após a morte, porque o sistema exige que tal disposição seja feita através de forma própria.
Existem negócios jurídicos bilaterais, que necessitam para existir de duas manifestações de vontade diferentes e recíprocas, concordantes e coincidentes, sobre o mesmo objeto. Forma-se o negócio jurídico bilateral no momento em que os figurantes materializam o acordo. Como exemplo, temos a composição de danos civis, em que as partes devem discutir e acordar sobre todos os termos do acordo que deverá ser homologado pelo juiz competente.
Por fim, existem os negócios jurídicos plurilaterais em que as manifestações de vontade são emanadas de mais de dois lados diferentes, mas que não são, propriamente opostas, convergindo sobre o mesmo objeto. O negócio jurídico plurilateral típico é o contrato de constituição de sociedade. Na sociedade, simples ou empresarial, não há relações jurídicas dos sócios entre si, especificamente, mas relações de cada um com o todo, a sociedade.
Devemos informar que existem também negócios jurídicos causais e abstratos, fiduciários, inter vivos e mortis causa, consensuais e reais, patrimoniais, solenes e não-solenes, típicos e atípicos, unos, unitários e complexos, que não apresentaremos conceituação por não interessarem diretamente ao objetivo desde trabalho.
Apresentadas a conceituação e as classes de negócios jurídicos existentes no ordenamento jurídico, iniciaremos o estudo das modificações instituídas pela Constituição Federal de 1988 na legislação penal brasileira, com a criação dos juizados especiais criminais. Analisaremos também o procedimento utilizado pela Lei n. 9.099/95 para os crimes de menor potencial ofensivo, para então iniciar o estudo dos negócios jurídicos penais, - da composição civil, da transação penal e da suspensão condicional do processo - cerne desse trabalho monográfico.
5. A Constituição e a criação dos Juizados Especiais
Os Constituintes de 1988, impressionados com o número elevado de infrações de pouca monta a emperrar a máquina judiciária sem nenhum resultado prático, uma vez que, quando da prolação da sentença, ou os réus eram beneficiados pela prescrição retroativa, ou absolvidos em virtude da dificuldade de se fazer prova, e principalmente considerando a tendência do mundo moderno de se adotar um Direito Penal mínimo, procuraram medidas alternativas que pudessem agilizar o processo, possibilitando uma resposta rápida do Estado à pequena criminalidade, sem o estigma do processo, à semelhança do que ocorria com a legislação de outros países.
Impressionados também, como assevera Tourinho Filho:
[...] com o número excessivo de encarcerados, número esse desproporcional ao de celas (enquanto tínhamos cerca de 110 mil presos, as celas não chegavam a 60 mil), o que ocasionava constantes rebeliões nas penitenciárias e casas de detenção (circunstância essa que infelizmente perdura), e entusiasmados com as novidades introduzidas nos ordenamentos europeus (a Lei n. 689/81, da Itália, que se converteu no art. 444 do atual Códice de Procedura Penale, o Código português e o ordenamento processual penal francês, dentre outros), bem como com os excelentes resultados que o Juizado Especial de Pequenas Causas vinha apresentando no cível desde 1984, os legisladores constituintes procuraram solução para o processo e julgamento das infrações de menor potencial ofensivo.6
Os legisladores desejavam uma solução alternativa que emprestasse rapidez à Justiça, sem despenalizar, por inteiro, aquelas condutas. Permitir o simples arquivamento, sem embargo da ilicitude do comportamento, não lhes pareceu uma providência acertada.
Com as varas criminais enfrentando extraordinária sobrecarga de processos atinentes a infrações de menor e médio potencial ofensivo, pouco tempo era destinado pelos órgãos de execução da justiça para os processos de maior complexidade. Era preciso abrir espaço para que os órgãos que integram a Justiça Penal pudessem dedicar-se mais aos graves problemas criados pelos crimes de elevado ou elevadíssimo potencial ofensivo, como o homicídio, o estupro, o tráfico de drogas, o seqüestro, o crime organizado etc.
Assim, foi introduzido na Constituição Federal o art. 98, I, onde resta estabelecido que a União no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados devem criar juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
6. Antecedentes históricos à Lei n. 9.099/95
A Lei n. 7.244, de 7 de novembro de 1984, criou o Juizado Especial de Pequenas Causas Cíveis, que foi instalado em diversas comarcas, muito embora encontrasse resistência de advogados e até mesmo de alguns juízes, que não se dispunham a instalá-lo. Tais Juizados vinham operando e resolvendo os conflitos patrimoniais com valor não excedente a vinte vezes o salário mínimo, apresentando resultados satisfatórios e incentivando a sua instalação em outras comarcas, como antiga aspiração de uma justiça mais informal e rápida.
Apesar de a Constituição Federal de 1988 ter previsto a criação também dos Juizados Especiais Criminais em todo o país para infrações penais de menor potencial ofensivo, o tempo foi passando sem que elaborasse a devida lei federal, e isso estava sendo reclamado com insistência pelos especialistas e interessados numa distribuição criminal mais célere.
Aliás, as pequenas infrações penais, como as contravenções e os crimes punidos com pena máxima de um ano, vinham abarrotando as varas e comarcas, com procedimentos morosos e resultados duvidosos, sobrecarregando as autoridades na esfera penal e com prejuízos para a imagem da justiça perante a opinião pública.
Mas mesmo com esses inconvenientes, que emperravam a distribuição da justiça criminal, não se via disposição e vontade política dos legisladores em dotar o País de uma lei criadora desse Juizado Especial, embora alguns Estados o tivessem implantado, por meio de leis estaduais, suportando até a pecha de inconstitucionais, a exemplo do Mato Grosso do Sul em 1990 e da Paraíba em 1991.
Sete anos após, é promulgada a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que definiu infração de menor potencial ofensivo e estabeleceu regras para a transação penal e para o procedimento sumaríssimo, dentre várias outras providências.
A Emenda n. 22, de 18 de março de 1999, acrescentou um parágrafo único ao art. 98 da Constituição, estabelecendo que Lei Federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal. Então, promulgada a Lei federal n. 10.259/01 criaram-se os juizados especiais cíveis e criminais federais., no dia 12 de julho de 2001, aos quais se aplicam, no que não houver conflitância, as regras da Lei n. 9.099/95. Há, entretanto, grande inovação nessa nova lei no que se refere ao conceito de infração de menor potencial ofensivo.
De fato, depois de dizer, em seu art. 2o, que compete ao Juizado Especial processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações penais de menor potencial ofensivo, completou, em seu parágrafo único que se consideram infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos da lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.
Como se percebe, além de elevar de um para dois anos o limite da pena cominada, excluiu aquela restrição relativa à previsão de procedimento especial.
7. Competência e composição dos Juizados Especiais
A competência dos juizados especiais decorre de legislação estadual, que, nos termos do art. 95 da Lei n. 9.099/95, tinha prazo de seis meses para ser promulgada a contar da sua entrada em vigor. Tal lei pode estabelecer que o juizado seja composto apenas por juízes togados, integrantes da magistratura, ou por estes e por juízes leigos, que atuarão sob a orientação dos primeiros, na função de conciliadores, precipuamente na tentativa de composição dos danos civis.
Os conciliadores serão recrutados na forma da lei estadual, de preferência entre bacharéis em Direito, estando excluídos os que exerçam função na administração da Justiça Criminal (art. 73, parágrafo único).
Os juizados são compostos de juízes togados e leigos, estes últimos atuam apenas na fase inicial do procedimento – na fase de conciliação entre as partes.
No tocante à competência, verifica-se que a própria Constituição Federal permitiu apenas o julgamento de infrações de menor potencial ofensivo, tratando-se, pois, de competência em razão da matéria. Em face disso, conclui-se que se infrações de outra natureza forem julgadas pelo juizado, haverá nulidade absoluta.
8. O ilícito criminal
No momento em que alguém imputável viola direito ou causa prejuízo a terceiro, por ação ou omissão voluntária, pratica um ato ilícito stricto sensu, ou ato ilícito absoluto.
O ato ilícito criminal tem as mesmas características do ato ilícito absoluto, distinguindo deste, apenas em razão da capacidade do agente para cometê-lo.
O crime e a contravenção são espécies de atos ilícitos criminais. Sua distinção também é valorativa, em razão da importância e nocividade do fato delituoso.
O crime é um ato ilícito criminal ao qual o sistema jurídico atribui sanções caducificantes. O ato ilícito caducificante constitui, em essência, um ato ilícito absoluto civil, criminal ou relativo, culposo, cuja eficácia consiste na perda de um direito. No direito penal estão configurados em todas as espécies de crimes e contravenções penais. As penas, portanto, implicam a perda ou restrição de direitos como a liberdade (penas privativas de liberdade e restritivas de direito), aos bens (penas pecuniárias), a incapacidade para o exercício de certos direitos, como a vedação do exercício de cargo público, a inelegibilidade etc.
Assim, o ato contrário a direito provoca a incidência da norma penal e as conseqüências punitivas previstas no seu preceito. Quando se trata de crimes de menor potencial ofensivo a situação não é diferente. A norma penal incide impondo ao Estado o dever de aplicar uma sanção.
Entretanto, com a promulgação da Constituição Federal e a edição das Leis n. 9.099/95 e 10.259/01, os crimes cuja pena máxima é igual ou inferior a dois anos, passaram a ser considerados de menor potencial ofensivo, tendo havido também uma distinção valorativa em razão de o legislador considerar de pequena nocividade essas condutas.
Nesse caso o Estado abdica do seu direito de aplicar a lei penal em todos os seus termos e apresenta propostas de substituição das penas contidas nos tipos penais por outras menos gravosas. A depender do caso, são aplicados os institutos da composição de danos civis e da transação penal para os criminosos que pratiquem delitos considerados pela lei de menor potencial ofensivo.
Assim que a Lei n. 9.099/95 entrou em vigor, surgiram duas correntes acerca da interpretação do art. 61 que trata do conceito de infração de menor potencial ofensivo. Uma delas entendia que também não estariam abrangidas pelo conceito de infração de menor potencial ofensivo as contravenções penais para as quais existisse rito especial, como por exemplo, o jogo do bicho (Lei n. 1.508/51), enquanto a outra entendia que a exceção era apenas para os crimes.
A polêmica, entretanto, foi logo encerrada, adotando-se o segundo entendimento, uma vez que as contravenções devem ser interpretadas como delitos de menor gravidade, e, por conseguinte, o conceito de infração de menor potencial lesivo abrange todas elas (qualquer que seja a pena), bem como os crimes que tenham pena máxima não superior a um ano, exceto se houver rito especial para apuração destes. O conceito abrange crimes previstos no próprio Código Penal e em legislações extravagantes, desde que a pena em abstrato não exceda a um ano e desde que não haja previsão de rito especial – o que foi modificado pela Lei n. 10.259/01, senão vejamos.
A lei que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais Federais estabeleceu em seu art. 2.º, parágrafo único, que consideram-se infrações de menor potencial ofensivo os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.
A mesma lei, em seu art. 20, expressamente vedou a sua aplicação no âmbito da Justiça Estadual.
Ter-se-iam, então, duas definições para as infrações de menor potencial ofensivo, uma para a justiça estadual e outra para a federal.
A doutrina não tardou a se manifestar sobre o problema, posicionando-se pacificamente no sentido de que a nova lei é inconstitucional no que se refere à proibição de ser aplicada na esfera estadual, por claramente afrontar o princípio da igualdade (art. 5.º, caput, da Constituição Federal), bem como os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Com efeito, se a diferenciação prosperasse, o indivíduo que desacatasse um policial federal seria julgado perante o Juizado Federal com direito a todos os benefícios que disso decorrem (transação, procedimento sumaríssimo), enquanto aquele que desacatasse um policial estadual não teria o mesmo direito, uma vez que o desacato possui pena máxima de dois anos. Essa diferença de tratamento obviamente afronta o princípio da igualdade e evidencia uma total desproporcionalidade na aplicação da norma penal, já que fatos de igual gravidade teriam tratamentos diversos.
Em razão disso, chegou-se à conclusão que tal lei trouxe nova definição de menor potencial ofensivo, que, por ser posterior, deverá ser aplicada tanto no âmbito Estadual quanto no Federal.
Em suma, a pena máxima para que um crime seja considerado de menor potencial ofensivo passou a ser de dois anos, abrangendo agora crimes como desacato, resistência, lesão corporal na direção de veículo automotor, porte ilegal de arma de fogo etc.
Ocorre que, analisando o art. 2.º, parágrafo único da Lei n. 10.259/01, surge a necessidade de salientar que as conseqüências da nova definição são ainda maiores.
Com efeito, ao contrário do que ocorre com a Lei n. 9.099/95, o novo texto não excluiu da competência do Juizado Especial, os crimes que possuíam rito processual especial, como os delitos de porte de entorpecentes, prevaricação, abuso de autoridade e outros, quer sejam de competência da Justiça Federal ou da Estadual.
Partindo dessa premissa, é fácil vislumbrar as enormes modificações no plano prático, já que esses delitos deixarão de seguir as regras do Código de Processo Penal e das leis especiais que estabeleciam rito diferenciado, para seguir os ditames da Lei n. 9.099/95, desde a fase de inquérito até a instrução probatória.
No tocante ao tema, ainda a doutrina não pacificou entendimento, havendo juízes que aplicam a Lei n. 9.099/95 para os crimes com rito especial e outros que aplicam o rito especial.
Para fixar a competência em razão da matéria aos Juizados Especiais Criminais, a Lei 9.099/95 utiliza, basicamente, a intensidade da sanção abstratamente cominada ao ilícito. Esse critério para estabelecer as infrações de menor potencial ofensivo não deixa de ser subjetivo, pois deveria ter em vista justamente o bem a ser tutelado, já que todo crime há o sujeito passivo direto e o indireto, que é justamente o Estado.
Essa restrição conceitual das infrações de menor potencial ofensivo aos crimes em que a pena cominada não exceda dois anos, deixa de considerar a gravidade objetiva do dano em várias hipóteses típicas. Na esfera do trânsito, por exemplo, em que a criminalidade culposa é violenta e crescente, não deveria ser aplicada a Lei n. 9.099/95, também no crime de violência doméstica em que os danos causados às vítimas são, muitas vezes, irreversíveis.
No caso específico da violência doméstica, tipificada no art. 129, do CP, o legislador deveria estabelecer procedimento especial e impossibilitar a utilização da Lei n. 9.099/95, já que a sua utilização tem causado sérios prejuízos às vítimas destes delitos.
Em nosso país, infelizmente, as leis não são feitas após discussões amadurecidas e ponderadas pelos legisladores, mas sempre sob o impacto de momentos emocionais, que resultam em leis que mais visam satisfazer a opinião pública do que propriamente servir aos interesses sociais.
9. Princípios utilizados nos Juizados Especiais
O art. 62 da Lei n. 9.099/95 estabelece que o processo perante o Juizado Especial será orientado pelos princípios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.
O princípio da oralidade estabelece que os atos realizados no juizado, preferentemente, devem ser realizados na forma oral, constando da assentada apenas um breve resumo das manifestações e decisões.
O princípio da informalidade afasta o rigorismo formal nos atos praticados perante o juizado. É o que se observa da análise dos seguintes dispositivos da lei: art. 65 (estabelece que os atos não serão considerados nulos se atingirem as finalidades para os quais foram realizados; art. 81, §3 (dispensa o relatório na sentença); art. 81, §5 (estabelece que se a sentença for confirmada pelos seus próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão.
Pelo princípio da economia processual, afastou-se a necessidade de inquérito policial para a apuração dos fatos delituosos e instituiu-se que a instrução deve ser realizada em um único dia. Além disso, estabeleceu-se que nenhum ato processual deve ser adiado.
Já o princípio da celeridade processual busca reduzir o tempo entre a prática da infração penal e a decisão judicial, para dar uma resposta mais rápida à sociedade.
É evidente que os princípios gerais da ação são aplicados aos juizados especiais. Por isso, a exigência de celeridade, economia processual e informalidade existente na apuração das infrações de menor potencial ofensivo não pode excluir os princípios genéricos e fundamentais como o contraditório e a ampla defesa, devido processo legal, estado de inocência, imediata aplicação da nova lei processual, vedação de provas obtidas por meios ilícitos entre outros.
O princípio da verdade real, que constitui regra nas ações penais em geral, é mitigado nos juizados pela possibilidade de transação nas infrações de menor potencial ofensivo de ação pública. Isso porque a transação obsta o início da ação penal, de forma que a responsabilidade pelo delito não chega a ser apurada.
10. A composição dos danos civis
O primeiro instituto que pretendemos analisar é o da composição dos danos civis, que é exemplo de negócio jurídico bilateral praticado no juízo criminal, conforme demonstraremos a seguir.
O Código Penal já contemplava a reparação do dano em algumas situações. Consistia em: a) circunstância atenuante (art. 65, III); b) causa substitutiva de condições na suspensão condicional da pena (art. 78, parágrafos 1o. e 2o.) e de revogação do benefício (art. 81, II); c) condição para concessão do livramento condicional (art. 83, IV); e d) requisito para a reabilitação (art. 94, III).
A tônica da legislação estava direcionada em ter a reparação do dano como causa atenuante da pena ou como condição para concessão de algum benefício, sempre ressalvando a justificativa de impossibilidade de reparação pelo agente.
Alterando essa perspectiva, a Lei n. 9.099/95 valorizou a participação da vítima no processo penal, permitindo que o juiz criminal na audiência preliminar, promova a conciliação das partes (autor e vítima) em relação aos danos causados pela infração de menor potencial ofensivo.
A par dessa novidade, consistente na invocação do juiz criminal para que se preocupe com aspectos materiais de infração, erigiu-se a composição dos danos civis como medida despenalizadora.
A composição dos danos derivados de delitos de menor potencial ofensivo pode abranger os danos materiais e/ou morais. O efeito despenalizador, residente na renúncia tácita do direito de queixa ou representação, opera-se com o acordo envolvendo os danos materiais resultantes do ilícito penal.
No que se refere à reparação do dano, a Lei n. 9.099/95, criou o instituto da composição de danos civis nos procedimentos de competência dos juizados, de sorte que a homologação do acordo realizado na audiência preliminar ou na própria audiência de instrução tem força de título executivo e impede a propositura de nova ação reparatória de danos na esfera cível.
A composição dos danos civis, nos crimes de ação privada e pública condicionada à representação, implica extinção da punibilidade do agente em face da renúncia automática ao direito de queixa ou de representação. No caso de ação pública incondicionada, a composição de danos civis não impede a propositura da ação penal, mas, conforme já mencionado, torna inviável nova ação reparatória de danos na esfera cível.
Pela primeira vez na nossa história permite-se ao juiz criminal tentar uma conciliação entre os envolvidos no fato infracional (autor do ato, responsável civil, se for o caso, e vítima) quanto à satisfação do dano.
Deu-se à vítima das infrações de menor potencial ofensivo uma atenção até então inexistente: ela é intimada a comparecer ao Juizado para se manifestar sobre a possibilidade de uma composição dos danos. Pode recusar a proposta formulada pelo autor do ato, pode fazer contraproposta, acordar ou divergir da manifestação conciliatória do Juiz ou de quem esteja no seu lugar.
Enfim, tem as partes inteira liberdade para acordar ou discordar, aceitar, fazer contraproposta ou recusar o que lhe for proposto, constituindo a composição de danos um verdadeiro negócio jurídico criminal bilateral, em que as partes envolvidas no litígio voluntariamente estabelecem os termos do acordo firmado.
Tratando-se de vítima menor de 18 anos, caberá ao seu representante legal manifestar-se a respeito.
No que se refere à preferência para a aplicação de pena não privativa de liberdade, o legislador criou o instituto da transação, que será adiante analisado, de forma que a composição entre o Ministério Público e o autor da infração nos crimes de ação pública obsta o início da ação penal pela aplicação imediata de uma pena de multa ou restritiva de direitos, com a vantagem de não gerar reincidência, sendo registrada apenas para impedir nova transação em um prazo de cinco anos (art. 76, § 4), e de não constar da folha de antecedentes criminais (art. 76, § 6).
A Lei n. 9.099/95 estabeleceu que o delegado de polícia ao receber a comunicação da ocorrência de crime considerado de menor potencial ofensivo deverá lavrar Termo Circunstanciado de Ocorrência e encaminhá-lo ao Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca ou ao Juízo Competente onde não houver juizado instalado.
A fase judicial inicia-se com o comparecimento do autor do ato e da vítima em juízo, mas, não sendo possível a realização imediata da audiência preliminar, outra será designada em data próxima, da qual ambos sairão cientes.
No dia e hora designados para a audiência preliminar, devem estar presentes o representante do Ministério Público, o autor do ato e a vítima, acompanhados de advogados, o juiz por sua vez, esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, e, se houver entendimento, será homologado pelo juiz o acordo, no que se refere aos danos, e aplicada a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.
Obtida a composição dos danos civis, será reduzida a escrito e homologada pelo juiz mediante sentença irrecorrível, tendo força de título executivo no juízo civil competente.
Não obtida a composição dos danos civis, será dada imediatamente à vítima a oportunidade de apresentar a representação verbal, que será reduzida a termo, mas o não-oferecimento da representação na audiência preliminar não implica a decadência do direito, que poderá ser exercido no prazo legal, em regra, de seis meses.
Apesar do grande avanço que o instituto trouxe para o nosso ordenamento jurídico, entendemos que poderia também ter alcançado outros crimes de natureza patrimonial, permitindo-se ao Membro do Ministério Público dispor da ação penal em caso de reparação do dano.
Sérgio Turra Sobrante corrobora o nosso entendimento quando diz que:
Apesar de elogiável e de representar grande avanço do ordenamento jurídico penal, entendemos, de lege ferenda, que a medida poderia ser mais elástica para alcançar alguns delitos de natureza exclusivamente patrimonial, tais como furto, dano e estelionato, permitindo-se ao Ministério Público dispor da ação penal quando reparado o dano pelo autor da conduta.7
Além disso, existem alguns crimes considerados pela Lei n. 9.099/95 de menor potencial ofensivo, em razão da pena a eles cominada, que na realidade, em razão dos bens jurídicos tutelados não o são, v. g.. os crimes de violência doméstica.
Entendemos que existem algumas falhas na lei que necessitam ser sanadas pelos legisladores. Uma delas é a utilização apenas do sistema de pena máxima (não superior a dois anos) para a caracterização do menor potencial ofensivo, por englobar em seu leque de atuação delitos que por sua natureza grave e muitas vezes cruel não poderiam ser considerados de menor potencial ofensivo, por ofenderem bens jurídicos relevantíssimos, a exemplo do crime de violência doméstica, tipificado no art. 129, parágrafo 9o, do Código Penal.
O que a pesquisa empírica revela é que as vítimas da violência doméstica são gravemente prejudicadas pela utilização do consenso e das penas restritivas de direito ou multa para os autores do fato. Para esses delitos deveria haver lei especial que disciplinasse o procedimento e a aplicação de outras sanções penais específicas e mais gravosas, além de ressarcimento dos danos causados às vítimas.
Para exemplificar poderemos citar o seguinte caso ocorrido na cidade de Rio Largo, Alagoas em 2004: O marido, acostumado a bater em sua esposa, chega em casa embriagado e na frente dos seus 03 (três) filhos bate novamente nela com as mãos e com um banco de madeira. Ela cansada de sofrer procura a delegacia de polícia da cidade para informar a prática do crime. Tomadas as declarações e encaminhada para exame de corpo de delito é encaminhado o T.C.O (Termo Cricunstanciado de Ocorrência) ao Juizado Especial Cível e Criminal de Rio Largo. Anexado o exame de corpo de delito ao T.C.O, constataram os peritos escoriações leves.
No Juizado Especial Criminal o procedimento é a designação de audiência preliminar para propor a composição dos danos civis em razão da natureza “leve” da agressão caracterizar o crime como de menor potencial ofensivo, o que evidentemente se afigura um verdadeiro absurdo nos crimes de violência doméstica, diante das conseqüências funestas para a vítima e seus filhos em razão das agressões sofridas.
11. A transação penal
O vocábulo “transação” tem o significado de “combinação, convênio, ajuste”, “ato ou efeito de transigir”. No conceito de direito civil, transação é a convenção em que, mediante concessões recíprocas, duas ou mais pessoas ajustam certas cláusulas e condições para que previnam litígio, que se possa suscitar entre elas ou ponham fim a litígio já suscitado.
A transação penal é um ato personalíssimo, exclusivo do acusado. Ninguém, mesmo com poderes específicos, poderá realizar a transação em nome do autor do ato. A aquiescência pessoal do autor da infração penal integra a própria essência do ato: estará transigindo com a sua liberdade, que passará a sofrer restrições. Em razão da sua definição e da presença indispensável do elemento volitivo para a sua validade, é exemplo de negócio jurídico bilateral praticado no juízo criminal.
A decisão do autor do ato de transigir ante a proposição do Ministério Público tem de ser produto inequívoco de sua livre escolha. É fundamental que saiba das conseqüências de sua opção: assunção de culpa, obrigação de cumprir a sanção aplicada, com possibilidade de ser convertida em prisão, além, é claro, de saber que, voluntariamente, está abrindo mão de determinados direitos constitucionais, tais como presunção de inocência e duplo grau de jurisdição.
Trata-se, como se percebe de sua conceituação, de instituto típico da área cível, agora – por força da Lei 9.099/95 – transplantado também para a esfera criminal, com suas características próprias e novas.
Embora o legislador brasileiro, ao instituir a transação penal nos crimes de menor potencial ofensivo, tenha-se baseado em outros sistemas penais, o certo é que o novo instituto não encontra paralelo no Direito Comparado, a exemplo do procedimento italiano - pattegiamento, da suspensão provisória do processo do direito portugûes, da la conformidad do espanhol e do plea bargaining do norte-americano.
Por meio do instituto da transação penal busca-se, de forma célere e relativamente informal, abstendo-se, de um lado, o dominus litis de exercer seu jus persequendi e, de outro lado, abrindo mão o averiguado, suposto autor do ato, de seu direito de amplo contraditório, atingir-se uma solução rápida, consensual e satisfatória para o conflito, em lugar de uma sentença.
Nos termos do art. 76 da Lei 9.099/95, havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a serem especificadas na proposta.
Pedro Henrique Demercian, ao analisar a proposta de transação penal oferecida pelo Ministério Público entende que:
[...] Dentre as funções institucionais do Ministério Público está a de exercer, privativamente, a ação penal pública incondicionada (CF, art. 129, I). Trata- se, na verdade, de um poder-dever do órgão ministerial pautado na obrigatoriedade ou legalidade, em contraposição ao princípio da oportunidade ou conveniência que norteia a ação penal de natureza privada. É certo, por outro lado, que a própria Constituição Federal, ao dispor sobre potencial ofensivo, abriu a possibilidade de, em determinadas hipóteses – legalmente limitadas (art. 76) -, o titular do jus puniendi atenuar a obrigatotiedade quanto ao início ou prosseguimento da persecução penal, por intermédio de transação.8
Muito embora o caput do art. 76 diga que o Ministério Público “poderá” formular a proposta, evidente que não se trata de mera faculdade. Não vigora, entre nós, o princípio da oportunidade. Uma vez satisfeitas as condições objetivas e subjetivas para que se faça a transação, aquele poderá converte-se em deverá, surgindo para o autor do ato um direito subjetivo.
Argumenta-se que se a transação implica acordo de vontades, por óbvio esse acordo há de ser entre o titular da ação penal e o autor do ato, não podendo o Juiz desempenhar um papel próprio do Ministério Público, sob pena de usurpar-lhe função exclusiva, e, por isso, equivaleria a uma espécie de movimentação ex offício, postergada pela Lei Magna.
Apenas em caso de haver inércia injustificada do Promotor de Justiça em oferecer a proposta, caberia ao autor do ato ou ao seu Defensor, indagar do Juiz sobre a possibilidade de aplicar apenas a multa ou medida não privativa de liberdade. E o Juiz, em face da indeclinabilidade da jurisdição, deve manifestar-se a respeito, encaminhando os autos ao Procurador-Geral de Justiça, aplicando a regra do art. 28 do CPP, por analogia, por ser o Ministério Público o titular da ação penal pública.
Acolhendo a proposta, seja do Ministério Público, seja do titular da ação penal privada, devidamente aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a medida (pena restritiva de direitos, com especificação da qualidade e tempo de duração, ou multa, devidamente delimitada dentro daqueles parâmetros traçados no art. 49 e § 1.º e no art. 60, § 1.º, todos do Código Penal).
Homologada a transação, lavrar-se-á um termo, para que fique na memória do fato; apenas para, em eventual recidiva em infração da mesma natureza (menor potencial ofensivo), constatar-se, em face do item II do § 2.º do art. 76, se o réu fará, ou não jus a idêntico benefício. Só para esse fim, mesmo porque a transação não acarreta a reincidência. E tanto é verdade que se vier o infrator a cometer um crime de estelionato, por exemplo, cuja pena mínima é de um ano, aquela transação anterior não é impeditiva da suspensão condicional do processo.
A sentença que homologa a transação penal não é nem condenatória, nem absolutória, é constitutiva. A pena não privativa de liberdade ou de multa é livremente consentida pelo autor do ato, por ele aceita como forma de evitar o processo penal condenatório. Desta forma, a pena não resulta diretamente da decisão judicial, mas sim da própria vontade do autor do ato, que livremente se submete a ela.
Após a análise do conceito, das partes envolvidas e do procedimento instituído pela lei para o instituto da transação penal, restou demonstrado que se trata de um verdadeiro exemplo de negócio jurídico processual penal, em que, dentro dos limites impostos pela lei as partes podem transacionar sobre seus direitos e obrigações.
12. A suspensão condicional do processo
A suspensão condicional do processo é um negócio jurídico, na medida em que o Estado-Juiz tem o dever de propor ao acusado, que preenche os requisitos legais, a substituição da pena que seria imposta em razão da prática do crime e da incidência da norma penal, pela restrição de alguns direitos.
Em audiência, observando o Ministério Público a prática de crime a que a lei comine pena igual ou inferior a um ano, observando ainda que o autor do crime preenche os requisitos do art. 89 da Lei n. 9.099/95, além dos constantes no art. 77 do Código Penal (que trata da suspensão da pena), deve, ao oferecer a denúncia, propor a suspensão condicional do processo, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos. O acusado pode aceitar ou não a proposta apresentada, bem como discutir alguns dos seus termos, semelhante ao que ocorre na transação penal. Por exemplo: o acusado que exerce a profissão de vigia noturno ou caminhoneiro não pode se recolher em sua residência todas as noites até as 22:00horas, cláusula que geralmente faz parte do acordo de suspensão, logo, deve argumentar com a autoridade judiciária esse fato a fim de evitar que essa cláusula faça parte dos termos da suspensão do processo. Se por algum motivo o acusado não aceitar a proposta, o processo continuará tramitando até final julgamento. Se o acusado aceitar a proposta de suspensão e cumprir todos os seus termos, após o término do prazo, o processo penal será extinto.
Dispõe o art. 89, parágrafo 2º., da Lei n. 9.099/95 que “O juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado”.
Existem algumas diferenças entre esse instituto e a transação penal, senão vejamos. Esta só pode ser admitida em se tratando de contravenções ou de crimes cuja pena máxima in abstrato não ultrapasse dois anos nem se subordinem a procedimento especial.
Já a suspensão condicional é perfeitamente admissível não só em relação a essas infrações como também no que respeita a quaisquer outras, desde que a pena mínima cominada não supere um ano. Ademais, na maioria dos casos, a transação não pressupõe denúncia, já o “sursis” antecipado, sim.
Após a oferta da denúncia e depois de o Juiz proceder ao exame de admissibilidade da demanda é que deverá ocorrer a audiência para apreciação da proposta de suspensão do processo.
Na transação, é imposta ao autor do ato uma multa ou medida restritiva de direitos; na suspensão condicional do processo, não haverá multa nem medida restritiva de direitos, apenas a promessa de cumprimento de algumas condições que podem ser impostas, à semelhança do que se dá com a suspensão condicional da pena.
Conforme dissemos, formulada a proposta, pode a Defesa aceitá-la ou recusá-la. Aceitando não significa confissão de culpa, está o réu apenas evitando o estigma do processo, com a vantagem de, uma vez cumprido o tempo de suspensão sem que tenha havido revogação, ver julgada extinta a punibilidade.
No nosso entendimento, a suspensão condicional do processo também pode ser considerada um negócio jurídico processual penal, apesar de não ocorrer uma verdadeira transação, para que ela seja possível há a necessidade da expressão da vontade do autor do ato (por meio da aceitação da proposta), que poderá ser adequada a sua situação pessoal e da homologação por juiz competente para ser considerada válida e produzir os seus efeitos no âmbito criminal.
13. Conclusão
Entendemos que o fato jurídico é o tema de maior relevância no estudo da Teoria Geral do Direito para a real compreensão do fenômeno jurídico, por essa razão apresentamos sua conceituação e a diferenciação entre o mundo fático e o mundo jurídico.
Ressaltamos também que o ato jurídico stricto sensu e o negócio jurídico são situações jurídicas distintas.
O ato jurídico stricto sensu é um fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fáctico a manifestação ou declaração unilateral de vontade, porém seus efeitos são prefixados pelas normas jurídicas e não cabe à pessoa qualquer escolha da categoria jurídica ou da estruturação do conteúdo das relações jurídicas.
Já no negócio jurídico a vontade é manifestada para compor o suporte fáctico de determinada categoria jurídica, a sua escolha, com o fim de obter efeitos jurídicos que podem ser determinados pelo sistema ou manifestados livremente por cada um, o que não ocorre com o ato jurídico stricto sensu.
No negócio jurídico a vontade não cria efeitos, por serem definidos pelo próprio ordenamento. O direito estabelece requisitos que devem ser atendidos para que a vontade possa entrar no mundo jurídico como negócio jurídico, não havendo um caráter absoluto no poder de auto-regulamentação da vontade negocial.
Havendo indeterminação, o suporte fáctico é até certo ponto livre às pessoas, desde que esteja em consonância com o sistema jurídico vigente.
Considerando que a definição de negócio jurídico apresentada pelos Pandectistas como ato de autonomia da vontade não responde a todos os questionamentos e não serve a todos os exemplos práticos, uma vez que nega um dado essencial caracterizador do fenômeno jurídico – a norma jurídica como delimitadora do mundo jurídico, optamos pela definição do Professor Marcos Bernardes de Mello, baseada na Teoria de Pontes de Miranda, segundo a qual no negócio jurídico a demonstração da vontade tem a função de compor o seu suporte fáctico, jamais podendo ela própria ser considerada negócio jurídico.
O presente trabalho monográfico teve a pretensão de apresentar os institutos da composição dos danos civis, da transação penal e da suspensão condicional do processo, suas definições, peculiaridades e procedimentos, a fim de demonstrar serem os três exemplos de negócios jurídicos praticados na área criminal.
Na composição de danos civis, as partes (autor do crime e vítima), pactuam livremente os termos do acordo celebrado, sendo considerada negócio jurídico bilateral. O Estado não exerce nenhuma interferência direta no conteúdo do pacto, cingindo-se apenas a verificar se o autor do ato ilícito preenche os requisitos legais, para posteriormente homologá-lo, transformando-o em título executivo exeqüível.
Na transação penal, o Ministério Público propõe a transação penal ao acusado, a fim de que seja aplicada uma sanção menos gravosa em razão do ato ilícito praticado. Ressalte-se que apesar de ser um direito subjetivo do acusado de lhe ser proposta a transação penal, este pode aceitá-la ou não, podendo discutir livremente os seus termos. Uma vez cumpridos os termos do acordo celebrado, ocorre a extinção da punibilidade.
Na suspensão condicional do processo o acusado pode aceitar a proposta ou recusá-la, além de poder adequá-la a sua situação pessoal. Uma vez aceitando a proposta, o processo tem o seu curso suspenso durante o período de cumprimento e após o término do período sem interrupção, a punibilidade é extinta.
Por essas razões, entendemos que esses institutos de direito criminal podem ser considerados, pela Teoria Geral do Direito, como negócios jurídicos processuais penais.
1 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. t.1. Campinas: Bookseller, 1999, p. 49. 60. t.
2 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2003, p. XXVI.
3MELLO, 2003, p. 166.
4MELLO, 2003, p. 184.
5 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 3. t. Campinas: Bookseller, 2000, p. 34. 60. t.
6 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 01.
7 SOBRANTE, Sérgio Turra. Transação Penal. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 56.
8 DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Juizados Especiais Criminais - comentários. Rio de Janeiro. Aide, 1996, p. 59.

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