quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A ética e o meio eletrônico


Catarine Gonçalves Acioli1
1 Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas. Professora de Graduação das Disciplinas: Direitos e Garantias Fundamentais e Teoria da Constituição, da Faculdade de Alagoas (FAL).
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1.Introdução. 2. A ética e a evolução de suas perspectivas. 3. A complexa relação entre a ética e os avanços tecnológicos. 4. A ética contemporânea e o Direito. 5. As relações no meio eletrônico e a ética contemporânea. 6. Conclusão.
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1. Introdução
A era contemporânea é marcada por uma crise de estruturação da humanidade, uma vez que o homem encontra-se diante de uma sociedade global, com preocupações, valores e perspectivas universais, embora ainda busque encará-la sob o ponto de vista individualista, o que se tem traduzido na elaboração dos preceitos normativos em vista de regular suas condutas.
Isso tem tornado extremamente prejudicial a relação entre a ética e o Direito, pois a técnica de elaboração do Direito tendo seu fundamento na ética, resta comprometida até que se obtenha um consenso sobre qual ética deve-se buscar numa comunidade globalizada e profundamente influenciada pelos avanços tecnológicos.
Ademais, o progresso científico, mediante uso da tecnologia, tem comprometido essa relação, em especial, devido à necessidade de realizar um controle ético em sua aplicação, baseado na reafirmação de uma responsabilidade para o agir humano, no intuito de preservar os valores de uma nova espécie de sociedade (sociedade da informação).
Essa necessidade traduz-se ainda mais precípua no campo das relações dos indivíduos e das nações no meio eletrônico, uma vez que prevalecem interesses econômicos capazes de comprometer a realização de uma inclusão digital de maneira livre, segura, autêntica e democrática.
Eis o motivo de se averiguar quais as novas formas assumidas pela ética nesse novo milênio, particularmente ao definir qual delas poderá ser aplicada para conter as ações desmedidas dos avanços tecnológicos, assim como quais medidas podem ser adotadas para que se amenize a complexidade entre os novos valores assumidos pela humanidade e a normatização de suas condutas, especialmente no trato de temas como, por exemplo, o uso do meio eletrônico na sociedade da informação.
Desse modo, não há como prosseguir em análises mais detalhadas no âmbito jurídico do novo modelo de sociedade, sem que se examine se há ou não a possibilidade da ética modificar a forma dos indivíduos se relacionarem no meio eletrônico e, conseqüentemente, a regulação de suas condutas.
2. A Ética e a evolução de suas perspectivas
O termo ética é proveniente do grego ethos, que significa “morada”, “modo de ser”, evoluindo semanticamente para se traduzir na forma de vida adquirida pelo homem, que sob o ponto de vista de Aristóteles refere-se à reflexão filosófica sobre o agir humano e suas finalidades, estando este voltado para a busca da felicidade.
De acordo com o filósofo, essa felicidade será atingida pela virtude do meio-termo, de modo que a ação do homem busque sempre por um ponto de equilíbrio, já que o extremo impede que se entenda o outro e com isso deixe o individualismo prevalecer, o que sufoca a própria constituição do indivíduo que, na verdade, é social.1
Assim, o homem está apto a encontrar esse meio-termo a partir da auto-realização pessoal e societária, mediante a prática de hábitos virtuosos.
Afinal, o que diferencia o homem dos demais animais é sua capacidade de buscar com base na virtude fazer da vida dos outros melhor, constituindo um código de conduta social que visa o bem.
Boff define a ética como conjunto de valores, princípios, inspirações e indicações a todo ser humano com o objetivo de viver humanamente a partir da realização de princípios basilares como: amor universal e incondicional pelo outro, cuidado, solidariedade universal, além da capacidade e da vontade de perdoar.2
Com relação à delimitação do seu conteúdo, a cultura ocidental privilegiou a origem grega ao assumir como discernimento para uma conduta ética a razão, passando esta a orientar a decisão da vontade.
A partir da evolução das sociedades e do próprio conteúdo da ética, foram surgindo diversas perspectivas que tentaram explicá-la:
Eudemonismo: esta perspectiva baseia-se na reflexão aristotélica a respeito de ética e a define como o fim querido pelo próprio homem, correspondente à felicidade, que, por sua vez, será atingida mediante as virtudes. Esse período foi marcado pela união entre razão e natureza, assim como a felicidade somente era atingida pela prática das virtudes.
Contratualismo: nessa outra perspectiva a ética tem como base a igualdade entre os homens e pressupõe um consenso entre os homens para que possam se associar e, dessa maneira, estabelecer uma convivência harmônica e equilibrada. Encontra-se, então, a definição de contrato social e a ética como fundamento a permitir a vivência do homem em sociedade.
Utilitarismo: essa perspectiva foi marcada pelas idéias, principalmente, de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, tendo como fundador o primeiro, que desenvolveu o princípio do bem-estar geral, ou seja, conforme este princípio todos os atos, inclusive as normas jurídicas e morais, devem reconhecer como base a orientação voltada para o bem-estar comum. Esse bem-estar comum consiste na maior felicidade possível para uma maior quantidade de pessoas possível.
Pluralismo: Devido ao surgimento das perspectivas acima abordadas atingiu-se um ponto em que tais teorias passam a se complementar, de modo que a ética possa ser compreendida como um agir humanamente voltado à busca da felicidade, mas essa se firmará na solidariedade, em especial com os mais necessitados, além de não permitir a desigualdade injusta, englobando, portanto, um pouco de todas as perspectivas sobre a ética acima referidas. Assim sendo, visando uma integração entre tais teorias, a ética passa a ser atingida mediante uma relação entre a harmonia social e a felicidade individual, sendo a primeira condicionante desta.
Contudo, embora a finalidade do pluralismo ético seja salutar não tem conseguido solucionar a crise que se instaurou no campo da ética no período pós-globalização, especialmente, porque a visão individualista prevaleceu refletida num eudemonismo egoísta, o que tem prejudicado a aplicação de uma igualdade material no meio social.
Dessa forma, o principal questionamento da ética tem sido a busca por uma nova vertente relacionada com seu universalismo. Apesar de muitos filósofos considerá-la como uma visão utópica, há quem a defenda como a única solução possível para as circunstâncias sociais, econômicas e políticas no qual o mundo passa hodiernamente3.
Além disso, o progresso tecnológico modificou profundamente a relação entre a ciência e a ética, uma vez que aquela passou a ser desenvolvida de modo apartado de limites éticos.
A principal conseqüência dessa relação é a criação de um imenso poder tecnológico, pois o desenvolvimento da ciência tem ocorrido cada vez mais a serviço da manipulação técnica, que se concentra nas mãos dos que detêm o poder econômico, já que o desenvolvimento científico é fator principal do desenvolvimento econômico nas sociedades pós-globalização.
Desde o momento em que a idéia de progresso científico se originou, a ciência foi se afastando dos juízos de valores, pois era compreendida como intrinsecamente boa, porém a partir da intervenção ilimitada de seus resultados no âmbito social, político e econômico tem ocasionado um agir humano com tal força e potencial capaz de danificar crítica e irreversivelmente a natureza e o próprio homem.
Nesse sentido, Morin destaca que a responsabilidade, por ser noção ética, somente pode ser exigível de um sujeito consciente, característica que não é encontrada nos pesquisadores científicos, além da dificuldade de se estabelecer um critério verdadeiro para um agir com responsabilidade dentro da ciência. Isto porque a ciência tem como estrutura principal a separação entre fatos e valores, por isso ainda não se pode falar na existência de uma sociologia da ciência.
Para o citado autor a falta de um método objetivo para considerar a ciência como objeto da ciência, o seu caráter paradoxal, bem como a hiperespecialização dos saberes disciplinares têm contribuído para a elaboração de uma ciência cada vez mais sem consciência, ou seja, a aquisição do conhecimento modificou sua finalidade, antes voltada para ofertar ao homem uma nova visão do mundo, iluminando sua realidade, e permitindo que ele transcendesse aos seus obstáculos, contudo, atualmente, o objetivo do saber está mais relacionado com a idéia de adquirir poder, servindo de mecanismo de hierarquia e opressão entre as nações4.
Assim, percebe-se que as visões tradicionais da ética não são capazes de nortear essa nova dimensão de responsabilidade que surge para o homem, bem como a ética do conhecimento pelo conhecimento, afastada de qualquer juízo de valor, não consegue conter a gravidade proveniente de uma manipulação irregular da tecnologia pelas grandes potências econômicas, seja no âmbito público, seja no âmbito privado.
Atualmente, a ciência está passando pelo que Morin denominou, em outra obra, “cegueira ética”5, de modo que o progresso moral não conseguiu acompanhar o desenvolvimento científico, produzindo, então, um saber científico livre de amarras, mas que ainda não se conhece e sequer sabe qual seu próprio alvo.
Conforme se destacou anteriormente, a crise ética, instaurada na era contemporânea, ocorreu devido ao descompasso em se ter uma sociedade e economia globalizadas e tecnologicamente avançadas de um lado e do outro uma visão extremamente individualista e egoísta, sem olvidar da diversidade cultural que ocasionou a origem de diversos sistemas de moral.
Não obstante, foi o que gerou uma necessidade de reavaliação dos valores que vinham servindo de base para a sociedade e para elaboração de normas jurídicas.
Neste sentido, Boff observa:
Para uma realidade global, importa também uma ética global. Até agora predominava uma ética traduzida nas várias morais, próprias de cada cultura ou região do planeta. Elas não ficam invalidadas, pois determinam valores, normas e práticas do ser humano em seu arranjo existencial, social e ecológico concreto.6
Conseqüentemente, origina-se uma nova reflexão sobre a ética, caracterizada pela valorização de uma natureza universal, ou seja, o resgate de um sentido universal de todos os seres que habitam a Terra, sem restrições regionais ou culturais, mas sim um patamar globalitário ao assumir que todos os seres racionais e irracionais fazem parte de uma mesma comunidade.
Todavia, cabe ainda uma reflexão sobre qual ética é capaz de impor limites aos avanços tecnológicos da ciência nessa realidade global, como, por exemplo, na utilização do meio eletrônico.
Houve, então, uma complementação quanto à análise da ética, por meio da retomada do empirismo ao manter unido todo sistema planetário tanto do ponto de vista biológico e físico-químico, como antropológico, além da consideração da tecnologia como fenômeno necessário para a existência e sobrevivência humana.
Ademais, o comércio entre as nações ganhou ares globalizados, impulsionado pela própria lógica do mercado capitalista, pelo desejo das nações em participar dos atos desse, além de se caracterizar por marcar o declínio do poder estatal nacional devido à retomada dos Estados não-intervencionistas mediante um modelo político neoliberal.
Dessa forma, percebe-se que a construção de um novo paradigma ético na modernidade terá como base um modelo de Estado capitalista, dependente tecnologicamente e caracterizado por um pluralismo político e cultural, tendo sofrido fortes influências do novo padrão da técnica e do meio social pós-globalizado.
3. A complexa relação entre a ética e os avanços tecnológicos
A relação entre ciência e ética sempre foi frágil e complexa, uma vez que o saber científico sempre se dispôs afastado de valoração, especialmente, quando esse se modernizou, pela produção tecnológica vinculada a compromissos políticos e econômicos das superpotências.
Na era da revolução tecnológica, iniciada em meados do século XX, constata-se, ainda, um novo formato de sociedade: a sociedade da informação, caracterizada pelo uso de novas tecnologias, mediante automatização de máquinas, tendo a inteligência humana como meio de transformar riquezas.
Aliás, ainda que a utilização das tecnologias da informação não determine a sociedade, a forma como essa as incorpora é capaz de determinar seu nível de desenvolvimento, uma vez que tais tecnologias passam a remodelar esse novo paradigma de sociedade constituindo sua base material em ritmo bastante acelerado7.
Além de alimentar uma profunda mudança no desenvolvimento social e econômico dos Estados, o crescente uso do meio eletrônico induz o homem a repensar sua posição diante do progresso científico, de fins e valores que pretende consagrar nessa sociedade da informação.
Há, portanto, um afastamento progressivo do homem do espaço formal de trabalho e aplicação da ciência com objetivo do máximo de apropriação material.
A informação passa a ser o produto de maior valor no meio social, tanto que o seu gerenciamento e concentração é o fim a ser perseguido pelas grandes empresas dos setores de tecnologia e comunicação, bem como pelas grandes nações como forma de aumentar seu poder político e econômico.
Nasce, portanto, um novo estágio na evolução dos sistemas de produção, em que a o uso da informação passou a ser tanto um produtor de bens como uma forma de melhorar a qualidade de vida, eis o motivo de sua essencialidade, embora esteja estreitamente relacionado a interesses econômicos, sem regulamentação específica e sequer limitação ética, por conta dos valores éticos tradicionais não se adequarem às transformações advindas com as novas tecnologias.
Ademais, há quem entenda pelo surgimento de uma tecnoética, representando um ramo da ética que investiga os problemas morais levantados pela tecnologia8. Especialmente após a Segunda Guerra Mundial, o avanço drástico do capitalismo definiu o destino da tecnologia, passando a orientá-la exclusivamente para fins econômicos.
A partir do referido período, o desenvolvimento científico guiado por aspectos econômicos desenvolveu uma racionalidade instrumental, que não tem encontrado limites éticos suficientes e encontra-se marcada pelo desequilíbrio, particularmente, nas relações do homem com o meio.
A relação entre ética e técnica tem ocupado alguns filósofos contemporâneos, sendo Hans Jonas um dos que mais se debruçou sobre o posicionamento da Filosofia e da ética face ao homem extremamente influenciado pelas novas tecnologias, pois essas permitiram ao homem mudar de maneira brusca os fundamentos da vida e de certo modo, poder atuar na criação e destruição de si mesmo, além de alterar seu modo de se comunicar e de estabelecer práticas negociais com os demais, já que a idéia de espaço e distância restou alterada no meio eletrônico a partir da criação do ciberespaço e dirigindo-se ao progresso centrado na digitalização e virtualização.
Conforme o referido autor essa relação deve fundar-se numa liberdade, que deve ser respeitada sempre, não podendo sofrer limites mediante o conflito com outros direitos, mas somente encontrando suas limitações no momento da ação, na responsabilidade, nas leis e na opinião da própria sociedade.
Hans Jonas elabora um novo imperativo baseado na idéia de responsabilidade pela utilização das novas tecnologias. Alertando para que o homem deve atentar para as conseqüências de seus atos, principalmente, em relação às gerações futuras, devendo desenvolver um novo plano ético a fim de delimitar essa nova dimensão de responsabilidade. Isto porque os avanços tecnológicos produzem efeitos remotos, irreversíveis e cumulativos, que podem intervir no homem e na natureza, atitude que, segundo a característica antropocêntrica das concepções éticas anteriores, não era, até então, considerada relevante9.
Na verdade, o referido autor muda o enfoque dado aos resultados das ações humanas, pois passa a considerar os desdobramentos futuros dessas tanto em relação ao ser humano como à natureza, ao invés de concentrar num caráter imediatista.
Propôs, então, que o homem ao agir fosse cauteloso a fim de que os efeitos de suas ações não fossem destruidores de vidas humanas futuras, preocupando-se com um agir coletivo, ainda que seu modelo de ética só pudesse ser comprovado a longo prazo.
Por conseguinte, o autor cria uma espécie de “imperativo tecnológico” como forma de evitar um verdadeiro “apocalipse tecnológico” 10, o que foi bastante importante para o desenvolvimento, tempos depois, da denominada ética mundial, pois traduz também implicitamente a idéia de solidariedade que os indivíduos devem ter uns com os outros e na busca por reequilibrar o agir humano.
Carvalho, ao analisar essa proposta de uma ética para o futuro baseada no resgate de uma responsabilidade por parte dos cientistas e técnicos na utilização das tecnologias, ressalta que há duas tarefas primordiais para serem realizadas por esses: maximizar o conhecimento das conseqüências dos agires humanos e elaborar uma força de conhecimento capaz de combinar saberes factuais e saberes axiomáticos, não mais restringindo a ética a aspectos meramente racionais.11
Assim, a prescrição ética sugerida por Hans Jonas se impõe reflexiva e não coercitiva, ao fazer com que o indivíduo repense sua forma de atuação científica a fim de agir com prudência e equilíbrio
Nesse sentido Dupas, ao comentar as idéias do citado filósofo, afirma que o caminho talvez seja o de induzir uma reforma intelectual e moral que legitime as direções do progresso, sendo necessário para tal responsabilidade, buscar uma nova hegemonia mundial que não se constranja pelo capital e utilize-se do progresso científico em benefício da maior parte dos cidadãos12.
Por outro lado, Karl-Otto Apel, abordado por Becchi, funda a ciência e os avanços tecnológicos numa ética de comunicação, em que, embora considere o caráter avalorativo da ciência como condição de sua existência, pressupõe-se que exista na comunidade científica, englobando aqueles sujeitos interessados no conhecimento científico, um fundamento ético, sob o risco de se constituir em um poder ilimitado. Becchi assim destaca:
No podemos argumentar racionalmente sobre ningún tema, se no presuponemos, además de una determinada estructura de la realidad y de las reglas lógicas, también una serie de normas éticas. Y ello por el hecho, de que no es posible controlar la validez logica de los argumentos sin presuponer una comunidad de científicos capaces de comunicación linguistíca y de producir un consenso intersubjetivo.13
No entanto, a grande problemática na relação entre a técnica e a ética encontra-se, segundo Becchi, na dificuldade de se procurar um fundamento racional da ética na contemporaneidade, primeiro porque a ciência é livre de valores e segundo porque este é o paradigma da racionalidade.14
No que se refere à relação entre a ética e a tecnologia, Singer destaca a perspectiva determinista da ética nos pensamentos de Marx, sendo esta voltada aos interesses das classes dominantes e, portanto, voltada aos países ricos e empresas transnacionais. Afinal, essa ética da comunidade global, fundamental no direito de comprar e vender, representa um reflexo da estrutura econômica que a tecnologia dessa sociedade faz surgir.15
Faz-se também necessário acrescentar que a Igreja Católica tem seu posicionamento rígido quanto essa complexa relação entre ética e ciência por considerar que a ciência não pode ter uma consciência ética e que o novo posicionamento do homem quanto a sua criação e destruição, tornando-se produto, eqüivale à ruptura com antigas certezas morais, cabendo, portanto, ao Direito realizar a ordenação daquela a fim de preservar a liberdade e superar as incertezas advindas com os avanços científicos.
4. A ética contemporânea e o Direito
A existência de preceitos normativos, legais ou morais, que irão guiar o agir humanamente do indivíduo, é imprescindível para sua sobrevivência em sociedade.
No entanto, ainda que o Direito ofereça bases sólidas, devido a seu formalismo e concretude, está submetido desde o momento de sua criação até sua efetivação à ética, tendo em vista que esta lhe oferecerá a segurança quanto à verdade de seu conteúdo e à justiça de sua aplicação.
A influência da ética na elaboração do Direito reflete a busca por uma maior segurança na aplicação de valores de suma importância para o agir humano nos casos concretos.
Direito sem base ética torna-se direito ilegítimo e de fácil instrumentalização por regimes autoritários e sem compromisso com ideais democráticos, como muito ocorreu durante o império desmedido do Estado de Direito.
Convém salientar que, no âmbito da relação entre ética e Direito, sempre foi tema relevante na área filosófica e jurídica a busca por fundamentos ou valores que tornem o Direito legítimo.
A diferença entre ética e Direito encontra-se no campo de atuação de ambos, ou seja, a primeira atua no campo abstrato, na definição de valores para elaboração de normas jurídicas, enquanto o segundo no campo concreto solucionando conflitos de interesses entre os indivíduos e regulando as condutas inter-subjetivas. Por isso é relevante a necessidade de se relacionarem.
Além disso, o vínculo entre esses dois campos, na contemporaneidade, é marcado pelo surgimento, ou direcionamento, a problemas bio-jurídicos, ou melhor, assuntos do âmbito jurídico, mas que necessitam de uma carga excessiva de valores éticos para que possam ser aplicados na prática, bem como possuem um considerável teor de complexidade encontrado na difícil relação entre a técnica (presente em tais temas) e a ética.
Dessa forma, a passagem pela era da globalização trouxe a lume as conseqüências do capitalismo desenfreado, a revolução tecnológica, inclusive no que concerne à grande evolução no campo das pesquisas científicas, particularmente envolvendo temas bioéticos, além da crise no sistema de trabalho, crise ecológica, marcadas por uma profunda desigualdade entre os indivíduos e entre as nações, como também um alto instinto de competitividade entre os seres humanos.
Convém ainda ressaltar Becchi ao demonstrar a preocupação da filosofia em relação à atitude ética do homem quanto à natureza e à sociedade face aos avanços da técnica: “Los hombres han pagado el acrecentamiento de su poder tecnológico no sólo com el extrañamiento de aquello sobre lo cual lo ejercitan, sino también com la destrucción de aquello que han aprendido a dominar.”16
Isso demonstra que o progresso científico e a evolução da sociedade não têm caminhado na mesma velocidade que a ética na era contemporânea, o que se reflete na própria produção das normas jurídicas.
5. As relações no meio eletrônico e a ética contemporânea
Do ponto de vista da sociedade da informação, em que barreiras geográficas são transcendidas e se institui novas bases de solidariedade entre os indivíduos há uma grande dificuldade em se aplicar limites éticos às condutas praticadas no meio eletrônico, especialmente, por ser um meio, cujo avanço está vinculado a interesses econômicos, ou seja, tanto no estabelecimento de relações pessoais como comerciais, porque esse meio conserva os mesmos princípios do liberalismo econômico ainda que sob o formato da época atual do neoliberalismo.
Apesar dessa complexa relação entre ética e o meio eletrônico, faz-se necessário buscar estabelecer padrões éticos fundados nas idéias do “imperativo tecnológico” de Hans Jonas, a fim de aplicá-lo, principalmente, nas relações comerciais realizadas por esse meio.
Por muitos anos a Internet era considerada um espaço sem lei e ilimitado, contudo, com a evolução das práticas tecnológicas e a relevância que a informação adquiriu na pós-modernidade, houve uma grande mudança de seu status.
A rede deixou de ser uma mera interligação de computadores de universidades para servir de meio de troca, aquisição e interpretação de informações, as quais passam a ser qualitativamente valoradas.
Ao analisar a importância da Internet, Lévy destaca que não há promessas dela resolver, em um passe de mágica, todos os problemas culturais e sociais do planeta, tendo em vista que a utilização do meio eletrônico e, conseqüentemente, a criação do ciberespaço representam a abertura de um novo espaço de comunicação, que necessita ainda ter as suas potencialidades positivas exploradas nos planos econômico, político, cultural e humano17.
Além disso, o meio eletrônico tornou-se, ao longo dos tempos, um incremento para a participação democrática, uma vez que a heterogeneidade cultural é sua marca presente, embora, diante de todos os avanços trazidos pela tecnologia nos últimos anos, esse tem sido o menos abordado, pois há uma falha em criar debates ideológicos sobre suas vantagens e desvantagens, bem como sobre as formas de se conduzir uma maior quantidade de cidadãos ao seu uso.
Uma dessas formas consiste na inclusão digital, ou seja, ampliação do uso do meio eletrônico pelos cidadãos, que somente poderá se realizar concretamente e democraticamente se, além de uma boa política de segurança das informações, for também estimulado o desenvolvimento de padrões éticos no trato com os indivíduos e com o próprio meio.
Todavia, a aplicação de uma ética de responsabilidade ainda não é suficiente, pois, por ser um meio de comunicação constituído de uma diversidade cultural, é preciso que os valores sejam estabelecidos mediante uma ética da comunicação.
Boff, ao trabalhar a idéia de uma ética mundial, menciona o projeto emancipatório de Habermas, porém destaca a necessidade de se garantir uma efetiva participação de todo cidadão na ação comunicativa cotidiana, a fim de se atingir a democracia como valor universal e vivo, e, desse modo, evitar mais uma forma de exclusão no mundo globalizado.18
Assim sendo, mediante uma composição dos dois padrões éticos referenciados (princípio da responsabilidade e efetiva busca pelo consenso a partir de uma ação discursiva) é possível adequar a práxis no meio eletrônico a um valor voltado à solidariedade coletiva e interação democrática, essencial para a estruturação da sociedade da informação.
Isto porque por meio da ética da responsabilidade será possível conter boa parte de ações desmesuradas capitalistas que persistem em ocorrer, em especial nas práticas contratuais e agora com o novo mercado da certificação digital, permitindo a proteção do meio eletrônico contra monopólios ou dominação por superpotências.
No que concerne à prática de um efetivo diálogo entre os participantes e os não participantes do meio eletrônico, encontra-se um caminho para aprimorar o funcionamento desse para que se possa aproveitar o máximo de seus benefícios.
Ademais, o uso das novas tecnologias de informação e da Internet precisa ser ponderado e orientado por um compromisso decidido em prol da prática da solidariedade a serviço do bem comum, tanto dentro das nações como entre elas mesmas. Estas tecnologias podem constituir um modo de promover o desenvolvimento integral das pessoas de maneira a buscarem fins em comum como paz e justiça.
A Internet só pode ajudar a fazer disto uma realidade — para os indivíduos, as nações e a raça humana — se for utilizada à luz dos princípios éticos clarividentes e sólidos, de maneira especial a virtude da solidariedade.
Dúvidas não há que todo processo de comunicação é essencial para a evolução da espécie humana, sendo a Internet o mais útil, célere e prático meio de comunicação.
A difusão da Internet levanta também um certo número de interrogações éticas específicas acerca de temas como a privacidade, a segurança e a credibilidade dos dados, os direitos autorais e a lei de tutela da propriedade intelectual, os sites que instigam ao ódio, a disseminação de boatos e muito mais. Contudo, a análise sucinta que se pretendeu realizar compreendia em responder até que ponto a ética pode limitar a liberdade no desenvolvimento de atos no meio eletrônico?
Como resposta é possível observar que a ética contemporânea, devido a seu caráter pluralista e fundada na responsabilidade para com as futuras gerações, bem como no estímulo à busca pelo consenso, pode ofertar formas de estabelecer valores a serem adotados como parâmetros a fim de tornar a sociedade de informação mais democrática.
Cabe também reconhecer que a elaboração de normas jurídicas gerais fundadas em tais valores tem sua relevância, uma vez que possibilitarão a segurança jurídica num campo que muitas vezes é renegado pelo Direito, mas sem esquecer que a revolução ética no meio eletrônico deve se iniciar por uma revolução cultural, ou seja, é necessário incutir uma idéia de união e solidariedade, primeiro, para que se possa estabelecer os padrões éticos comuns específicos de cada forma de relação realizada no meio eletrônico.
Nesse sentido, Wolton conclui “se os internautas convencidos de uma Internet democrática querem conservar uma real iniciativa, é preciso uma aliança entre eles e as forças culturais, sociais e políticas que compreenderam que a comunicação é um dos maiores desafios da sociedade de amanhã.”19
Desse modo, busca-se encontrar o consenso fundamentado em valores éticos, que devem prevalecer nas relações do meio eletrônico e que servirão como base para elaboração de futuras legislações, bem como é conveniente acrescer as idéias de Karl-Otto Apel quando este estimula o modelo discursivo para se atingir o consenso.
No entanto, há que se observar com uma certa ressalva as idéias desse autor, pelo fato de ele realmente não se importar com o conteúdo do referido consenso, devido ao seu apego ao formalismo.
Constata-se, então, que apesar da relação ética, tecnologia e sociedade representar um caminho complexo, especialmente, na era de pós-globalização, em que já existe uma certa dificuldade em definir que espécie de ética vigorará em um campo que, desde o século XVIII com advento do progresso científico, sempre foi apartado de juízos de valores, mas que, nos últimos anos, necessita que lhes sejam agregados, a fim de preservar a própria existência da humanidade tanto na relação com a biosfera como nos novos formatos de relações sociais.
6. Conclusão
O fato de o homem ser responsável pela construção de sua própria história permitiu sua evolução no decorrer dos séculos, no âmbito material, mediante progressos científicos, desde a era da máquina a vapor até a revolução digital provocada pela descoberta do chip.
No campo das idéias essa evolução igualmente foi bastante sentida, na tentativa de centrar a ética em diversas concepções ao longo dos tempos. Apesar de ter iniciado, a partir da reflexão aristotélica, com a busca por uma felicidade, ao se atingir o meio termo, que se traduziu numa realização individual, mas acima de tudo social, mediante a prática de virtudes em relação aos outros indivíduos. Passou pelo utilitarismo de Bentham e Mill concentrado na busca pelo bem-estar comum, sem ou com quantificação e qualificação, além do contratualismo em que configurou o fundamento do pacto social. Atingiu, por fim, um pluralismo ético como ideal para só então “desaguar” no que conhecemos por ética mundial.
Essa atual vertente pretende, na verdade, colocar o homem em integração com os demais seres e com a própria Terra, entendendo-o como um dos elementos desta e não como o único e principal e isso ocorreu pela necessidade de se ater a preocupações originadas com uma prática desenfreada de um capitalismo liberal em um mercado globalizado, que construiu nações super poderosas em face da degradação de outras culturas e do próprio meio ambiente.
Daí o porquê de se buscar uma ética construtivista, para, mediante novos valores e princípios universais, elaborar novos caminhos para o indivíduo seguir nessa “aldeia global”.
Todavia, convém atentar também para a necessidade de se aplicar limites éticos à técnica moderna, compreendendo esta o principal fator de intervenções, sem medidas, do homem em campos nunca antes imaginados como nas alterações de sua própria existência, mediante a genética, ou criação de novos espaços de comunicação em que não há limite espacial ou cultural (Internet).
Assim, não há como renegar a relevância atual de se estabelecer padrões éticos, para conter as conseqüências maléficas dos avanços tecnológicos, a fim de permitir que esses sejam utilizados para tornar a sociedade da informação mais democrática.
Além disso, é fundamental, após o estabelecimento de padrões éticos fundados no aspecto principal da ética contemporânea, ou seja, no pluralismo, que se estabeleça uma relação entre tais padrões e as normas jurídicas, cujos fundamentos se encontrarão naqueles.
Destarte, não se constitui tarefa impossível a elaboração de limites éticos para se aplicar às relações ocorridas no meio eletrônico, especialmente, ao se utilizar de uma conjunção das concepções éticas modernas como àquelas abordadas anteriormente mediante a busca por um consenso a partir de um discurso democrático entre os cidadãos (incluindo usuários e futuros usuários desse meio) e aplicação do princípio de responsabilidade de Hans Jonas como caminho para aplicar os objetivos de uma ética mundial ao meio eletrônico.
Por isso, esse padrão ético não deve ser tido como abstração, mas sim como uma ética que já teve seu alicerce elaborado e que servirá de grande utilidade para diminuir a complexidade da aplicação da ciência e das novas tecnologias, que requerem urgentemente alguma espécie de inspiração valorativa.
1 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro 2. 2003, p. 49.
2 BOFF, Leonardo. Ética & eco-espiritualidade. Campinas-SP: Verus Editora, 2003, p. 12.
3Seguem essa linha de pensamento Leonardo Boff e Peter Singer.
4 MORIN, Edgar. A responsabilidade do pesquisador perante a sociedade e o homem. IN: Ciência com Consciência. 4 ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 117-123.
5 MORIN, Edgar. O método 6: ética. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 73.
6 BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Brasília: letraviva, 2000, p. 26.
7 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 40-50.
8 BUNGE, Mario. Dicionário de filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 375.
9 JONAS, Hans. Ética, medicina e técnica. Lisboa: veja, 1994, p. 36-37.
10 Ibid, p. 37.
11 CARVALHO, Edgar de Assis. Polifonia cultural e ética do futuro. Revista Margem. Dossiê: Ética e o futuro da cultura. São Paulo: Educ, 1999, p. 37.
12 DUPAS, Gilberto. Ética e poder na sociedade da informação: de como a autonomia das novas tecnologias obriga a rever o mito do progresso. 2. São Paulo: Ed. UNESP, 2001, p. 122-123.
13 BECCHI, Paolo. La ética en la era de la técnica.Elementos para una critica a Karl-Otto Apel e Hans Jonas. Doxa nº 25 – 2002. Disponível em: www. cervantesvirtual.com, p. 122.
14 Ibid, p. 121.
15 SINGER, Peter. Um só mundo: A ética da globalização. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 15-16.
16 BECCHI, Paolo. La ética en la era de la técnica. Elementos para una critica a Karl-Otto Apel e Hans Jonas. Doxa, n 25, 2002, p. 118.
17 LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 11.
18 BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Brasília: letraviva, 2000, p. 61-63.
19 WOLTON, Dominique. Pensar a Internet. In: A genealogia do virtual: comunicação, cultura e tecnologia do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2004, p. 154.

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