quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O ACESSO À JUSTIÇA COMO REQUISITO INDISPENSÁVEL À DELIMITAÇÃO DO CONTEÚDO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA


Thiago Rodrigues de Pontes Bomfim*1
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I. INTRODUÇÃO. II. A NORMA JURÍDICA E O DISCIPLINAMENTO DAS CONDUTAS SOCIAIS. III. A NORMA CONSTITUCIONAL E AS PECULIARIDADES DE SUA INTERPRETAÇÃO. IV. POR UMA TIPOLOGIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS – PRINCÍPIOS E REGRAS. V. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O CONDICIONAMENTO DA INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. VI. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, O MÍNIMO EXISTENCIAL E O ACESSO À JUSTIÇA COMO REQUISITO INDISPENSÁVEL AO SEU EXERCÍCIO. VII. CONCLUSÃO
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I. INTRODUÇÃO
Vivemos em uma época de profundas transformações, em que o Direito já não cabe mais nas ordens escritas e positivadas que sempre foram tidas como intangíveis e bastantes em si. Com a superação dessa concepção estritamente legalista outrora dominante, a própria noção de ordenamento jurídico sofreu modificações profundas, passando a ordem jurídica, e, mais especificamente a Constituição, a estar aberta a valores que sempre permearam a realidade do Direito, mas que não podiam fazer parte de seus domínios.
Essa nova era surge, portanto, como uma superação do conhecimento convencional, preservando relativamente o ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo idéias como as de justiça e legitimidade. O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e direito, fazendo o que os autores alemães denominam de “virada kantiana”2. Isto porque, embora sempre estivesse lado a lado em relação ao sistema jurídico, fundamentando, inclusive, boa parte de seus dispositivos, esses valores não era aceitos pela ordem positivista como sendo parte do ordenamento. Dessa maneira, para que pudessem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando das demais ciências que buscam disciplinar a conduta social para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente, como bem lembra BARROSO:
“Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade. Outros, ainda que clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a Separação dos Poderes e o Estado Democrático de Direito. Houve, ainda, princípios que se incorporaram mais recentemente ou, ao menos, passaram a ter uma nova dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da solidariedade e da reserva de justiça”3.
Dentro dessa vertente principiológica, que passa, a nosso ver acertadamente, a reger os destinos da interpretação constitucional, um Princípio sobressai como um dos mais utilizados na atualidade para a fundamentação das diversas soluções a serem aplicadas às mais variadas situações jurídicas: o da Dignidade da Pessoa Humana, que busca proteger os bens jurídicos mais caros ao indivíduo, indispensáveis à sua sobrevivência digna. Em que pese não haver consenso em relação ao seu conteúdo material, alguns autores arriscam delimitá-lo, incluindo entre esses valores abarcados pela ordem jurídica um elemento que tem como objetivo instrumentalizar a proteção e assegurar o exercício desses direitos, que é o acesso à justiça.
O objetivo desse estudo, portanto, é o de tratar o acesso à justiça como sendo de fundamental importância para o exercício pleno do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, mas não reduzindo esse elemento a um mero acesso à maquina jurisdicional, e sim demonstrando a necessidade de se interpretar esse acesso à justiça como aplicação e utilização de todas as possibilidades hermenêuticas que passam a ser oferecidas por essa nova concepção de sistema jurídico, reconhecendo aos princípios o patamar hierárquico que lhes é devido.
II. A NORMA JURÍDICA E O DISCIPLINAMENTO DAS CONDUTAS SOCIAIS
Antes de iniciarmos o estudo do tema propriamente dito, por uma questão de ordem e método, é necessário que se faça uma breve incursão pelos domínios da teoria geral do direito. O ser humano, desde o início de sua existência, está em contato com a noção de ordem no que diz respeito à manutenção de sua existência. O seu próprio nascimento é fruto de uma determinação normativa, ainda que não jurídica: a das leis da natureza. Ainda no convívio familiar, o primeiro e talvez mais importante círculo social a que será submetido, seu comportamento e suas ações são moldadas de forma a atender às exigências impostas pelo meio em que estiver inserido, assim como ocorrerá mais adiante em relação aos demais grupos sociais com que pretenda se relacionar.
Entretanto, não obstante a inclinação natural do ser humano para o convívio social, utilizando aqui a teorização hobbesiana, o homem sempre trará consigo o egoísmo peculiar à sua natureza, o que pode fazer com que, num eventual conflito de interesses com os demais membros do grupo social, tente impor sua vontade sobre a dos demais integrantes. Como não se pode permitir que cada indivíduo conduza sua vida da maneira que melhor lhe aprouver, faz-se necessária a imposição de limites às condutas humanas no meio social, no intuito de preservar a harmonia da convivência em sociedade.
É justamente nesse momento e com este objetivo que surge o Direito, ou seja, com a finalidade de organizar a vida social através do que Kant chamou de “delimitação harmônica das liberdades”4. Desta forma, mesmo o ser humano tendo o seu comportamento moldado por diversas normas de controle social, tais como a ética, a moral e a religião, nenhuma delas cumpre com igual ou maior sucesso a finalidade precípua de disciplinamento das condutas humanas como o faz a norma jurídica. Isto por conta da característica sine qua non de que esta última dispõe de disciplinar comportamentos independentemente da vontade de seus destinatários, usando, inclusive, caso necessário, o emprego da força. Esta prerrogativa é chamada de coercibilidade e é aplicada de forma socialmente organizada.
Ocorre que, além da coercibilidade, a norma jurídica conta com outras características que a singularizam frente às demais normas de controle da vida do homem em sociedade, dentre as quais destacamos a estrutura escalonada de seus preceitos. O sistema jurídico é formado por uma gama incontável de normas, tal como se verifica em relação à ética, à moral ou à religião. Entretanto, ao contrário do que acontece nesses sistemas, no jurídico as normas não estão dispostas de maneira horizontalizada e desorganizada. As normas jurídicas encontram-se agrupadas de forma hierarquizada, dispostas em diversos patamares, de sorte que a que estiver situada no patamar superior fundamenta e condiciona a validade das normas localizadas abaixo delas à observância de suas determinações. Dessa forma, ao se aferir a validade de uma norma no sistema jurídico, deve-se proceder, primeiro, a uma análise que leve em conta esta verticalidade fundamentadora, que fará com que se possa chegar ao fundamento de todo o sistema. Há que se ressaltar, entretanto, que a situação acima delineada somente se verifica em relação ao direito moderno, dogmático, emancipado das demais normas sociais, através do que ADEODATO chama de “diferenciação funcional”5. O mesmo não ocorrerá com o direito das sociedades primitivas, completamente indiferenciado.
Dessa maneira, é incontestável que, diante da realidade sistemática em que o Direito encontra-se atualmente inserido, a norma jurídica não poderá jamais ser diferenciada das demais normas de controle social sem que essa diferenciação leve em conta o contexto normativo-sistemático em que esta norma está inserida. Daí porque um dos sinônimos de sistema jurídico é justamente o termo ordenamento jurídico. Essa idéia deverá estar presente na atividade de qualquer intérprete, uma vez que, conforme demonstrado anteriormente, não há como se pretender encontrar os fundamentos da norma jurídica sem a devida contextualização no ordenamento como um todo. Como pretender encontrar a real dimensão da proteção jurídica dispensada aos direitos fundamentais e à dignidade humana, tema de nosso estudo, sem aferir o grau de importância e a posição hierárquica ocupada pelo texto normativo em que esses temas estão inseridos? Estando, pois, estas matérias tratadas em sede constitucional, torna-se imprescindível que se cuide dos mecanismos necessários à sua interpretação.
III. A NORMA CONSTITUCIONAL E AS PECULIARIDADES DE SUA INTERPRETAÇÃO
Em que pese se falar em uma nova interpretação constitucional, tal assertiva não significa que os conceitos e métodos hermenêuticos tradicionalmente utilizados não tenham mais utilidade alguma para o intérprete da Constituição. Até mesmo porque, em alguns casos, a depender do dispositivo a ser interpretado, a tarefa do intérprete da Lei Maior em muito se assemelhará à interpretação da legislação ordinária, como se demonstrará logo adiante. Razão pela qual se faz necessária a menção aos conceitos clássicos de hermenêutica, interpretação e aplicação.
A hermenêutica jurídica é a ciência da interpretação, o gênero do qual o termo interpretação é espécie, tendo por objetivo formular os princípios e regras necessários à concretização da tarefa do intérprete. Já a interpretação propriamente dita, significa a atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto. Por fim, a aplicação da norma representa o final do processo interpretativo, sua concretização, pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato. Estes são os marcos do itinerário intelectivo que o intérprete deve percorrer para cumprir satisfatoriamente sua função6.
Todavia, ainda que tais conceitos possam perfeitamente ser utilizados na interpretação da Constituição, nem sempre serão suficientes de per si para extrair todas as possibilidades contidas nos dispositivos constitucionais. Isto ocorre devido ao fato de as Constituições serem formadas, em maior parcela, por normas principiológicas, dotadas de elevado grau de abstração, já que destinam-se a alcançar situações que nem sempre estão explicitamente previstas nas expressões contidas nos textos normativos. Daí porque alguns autores trabalham, além dos tradicionais conceitos acima apontados, com a especificação de outro, mais relevante para a hermenêutica constitucional, que é o de construção. Enquanto interpretar significa encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, a construção seria a tarefa de tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das expressões contidas no texto, colhendo conclusões no espírito e não na letra da norma7.
A interpretação constitucional, portanto, embora utilize técnicas interpretativas tradicionais, possui, também, princípios próprios e apresenta complexidades inerentes ao seu texto. Entretanto, por força da necessidade de render as devidas homenagens ao princípio da unidade da ordem jurídica8, isso não a separa da interpretação geral do direito, pois, como nos lembra BARROSO9, “existe uma conexão inafastável entre a interpretação constitucional e a interpretação das leis, de vez que a jurisdição constitucional se realiza, em grande parte, pela verificação da compatibilidade entre a lei ordinária e as normas da Constituição”10.
Pode-se dizer, então, que a tarefa de interpretar a Constituição é realizada sob dois prismas: ou se aplica diretamente o Texto Constitucional para reger uma situação jurídica, oportunidade em que a norma constitucional incide como uma norma jurídica convencional, instituidora de direito subjetivo; ou se opera o controle de constitucionalidade, que significa, de modo geral, adequar a legislação ordinária às determinações magnas emanadas da Lei Maior. Nesse segundo caso, a norma não rege nenhuma situação particular, servindo apenas como paradigma para a validade das disposições normativas infraconstitucionais. Desta feita, a tarefa do intérprete da Constituição se assemelha à interpretação da legislação ordinária, quando a norma constitucional a ser interpretada esteja regendo uma situação jurídica individual, gerando direito subjetivo, oportunidade em que, pela natureza clara e objetiva da linguagem de tais dispositivos, não precisará recorrer a métodos hermenêuticos mais apurados, satisfazendo-se com os critérios utilizados para a interpretação das normas jurídicas em geral. No entanto, sendo a Constituição formada, em grande parte, conforme já dito, por normas que apresentam alto grau de abstração, os conceitos e métodos clássicos, embora utilizáveis, não serão suficientes, devendo o intérprete recorrer a princípios e conceitos próprios à hermenêutica constitucional, como a técnica da construção, acima mencionada.
Conforme já dito, a interpretação da Constituição lança mão de mecanismos tradicionalmente utilizáveis para a realização da tarefa de interpretar as normas jurídicas em geral. Todavia, apresenta o Texto Constitucional um conjunto de características que tornam singulares as disposições normativas contidas na Lei Maior, fazendo com que a interpretação desses dispositivos torne-se uma tarefa peculiar. Dentre estas, destacamos: superioridade hierárquica, natureza da linguagem, conteúdo próprio e o caráter político de suas disposições11.
A superioridade hierárquica da Constituição frente aos demais textos normativos, também chamada de superlegalidade, ou simplesmente supremacia, deve ser sempre o ponto de partida do intérprete. Ao pretender iniciar sua atividade, deve este sempre ter em mente que a norma a ser interpretada não é um dispositivo legal qualquer, mas sim uma disposição normativa que está inserida no diploma legal de maior hierarquia no contexto normativo, servindo, portanto, como parâmetro para a interpretação de todas as normas inseridas no ordenamento do qual não só faz parte, como, principalmente, inaugura12. É justamente essa supremacia que “confere à Constituição o caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, de forma tal que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido”13. A origem da noção de supremacia está ligada a duas distinções essenciais: entre poder constituinte e poder constituído e entre rigidez e flexibilidade constitucional14. A primeira demonstra, em verdade, não simplesmente a supremacia da Constituição sobre os demais textos normativos, mas sim do poder constituinte sobre as demais fontes de produção normativa, o que faz com que o produto do seu exercício, o Texto Constitucional, ocupe um patamar hierarquicamente superior ao que é ocupado pelos dispositivos oriundos da manifestação dos poderes constituídos. A Constituição é suprema em relação à legislação infraconstitucional porque o poder do qual ela se origina é igualmente supremo frente aos demais poderes. Já a segunda dicotomia é fundamental para demonstrar que a idéia de supremacia somente existirá nos ordenamentos em que haja rigidez constitucional, ou seja, um procedimento de alteração do Texto Constitucional mais gravoso do que o utilizado para a reforma da legislação ordinária. Isto porque caso o procedimento para alteração da Constituição seja o mesmo utilizado para modificar a ordem infraconstitucional, onde estaria a superioridade. Vale lembrar que a superlegalidade, superioridade hierárquica, ou simplesmente supremacia da Constituição, não configura apenas uma mera orientação hermenêutica, estando, ao contrário, elevada ao patamar de princípio constitucional.
Uma outra característica que singulariza a interpretação da Constituição frente a interpretação das demais normas jurídicas é a natureza da linguagem dos dispositivos constitucionais. Como já foi registrado anteriormente, a linguagem da Constituição é caracterizada, não apenas, mas em grande parte, por normas que possuem elevado grau de abertura e abstração, e, consequentemente, menor densidade jurídica, o que não acontece com a linguagem que se verifica nos dispositivos situados abaixo dela. Dessa forma, o esforço exigido do intérprete do Texto Constitucional será bem maior. Não há como se comparar as dificuldades encontradas para se chegar, por exemplo, ao conceito de função social da propriedade, com a tarefa de se verificar a idade com que uma pessoa atinge a maioridade civil. Esse grau de abertura das normas contidas na Constituição faz com que alguns autores sustentem até mesmo que, diante destes casos, o intérprete exerceria uma atividade discricionária15.
Podemos também anotar como traço distintivo do Texto Constitucional, o conteúdo de boa parcela dos dispositivos materialmente constitucionais, que se diferencia da estrutura convencional das normas que compõem os demais ramos do direito. Nesta linha, destacamos as chamadas normas de conduta, de organização ou de estrutura e as programáticas16. As primeiras são as normas jurídicas por excelência, que regem e disciplinam condutas e comportamentos diante de bens protegidos pela ordem jurídica. Prevêem um fato e a ele atribuem determinada conseqüência jurídica. Já as normas de organização ou estrutura, como o próprio nome sugere, não se destinam a disciplinar condutas de indivíduos ou grupos, tendo apenas caráter instrumental. Por fim, também contribui para o conteúdo peculiar da Lei Maior a existência em seu texto de normas denominadas programáticas, que têm por objeto estabelecer princípios e fixar programas de ação. Sobre essa categoria, vejamos as palavras de BARROSO:
“Característica dessas regras é que elas não especificam qualquer conduta a ser seguida pelo Poder Público, apenas apontando linhas diretoras. Por explicitarem fins, sem indicarem os meios, investem os jurisdicionados em uma posição jurídica menos consistente do que as normas de conduta típicas, de vez que não conferem direito subjetivo em sua versão positiva de exigibilidade de determinada prestação. Todavia, fazem nascer um direito subjetivo negativo de exigir do Poder Público que se abstenha de praticar atos que contravenham os seus ditames”17.
Finalizando as características que fazem com que as normas constitucionais possuam traços peculiares, abordemos o caráter político de suas disposições. Ao contrário das normas jurídicas infraconstitucionais, que se originam dos poderes constituídos, a Constituição é fruto do exercício de um poder de fato, ilimitado, autônomo e incondicionado18, político em sua essência, que é o poder constituinte originário. A Constituição, portanto, vai representar a tentativa de converter esse poder político em poder jurídico, esforçando-se para operar a juridicização do fenômeno político. No entanto, não sendo possível livrar inteiramente o Texto Constitucional das interferências políticas presentes em sua criação no momento da interpretação de suas normas, que implicaria em atingir a utópica racionalidade total, deve-se buscar, então, adequar o caráter político dos objetivos constitucionais com a tarefa indiscutivelmente jurídica de interpretá-lo. Ou seja, não se pode afastar o fato de que a Carta Magna se origina de um poder eminentemente político. Todavia, o intérprete deve sempre perseguir a compatibilização desse caráter político presente desde a criação da Constituição com os limites e possibilidades oferecidos pelo ordenamento jurídico, através de uma racionalidade possível19.
Após as considerações acima expostas sobre a interpretação das normas constitucionais, passemos à dicotomia clássica que ocupa, ainda hoje, espaço na doutrina sobre a matéria.
IV. POR UMA TIPOLOGIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS – PRINCÍPIOS E REGRAS
Para uma melhor compreensão do tema central deste trabalho, é fundamental que tratemos de uma dicotomia que ocupa de há muito as preocupações da doutrina constitucional. A moderna dogmática constitucional tem como uma de suas bases a distinção feita entre regras e princípios, como elemento indispensável à superação do que BARROSO20 chama de positivismo legalista, onde as normas se limitavam a regras jurídicas. Nesse contexto, passou-se a entender que as normas jurídicas em geral, e as normas jurídicas em particular, podem ser enquadradas nessas duas grandes categorias diversas. As regras têm uma incidência mais restrita às situações jurídicas por elas preconizadas, enquanto os princípios possuem uma maior carga valorativa e um alto grau de abstração. Importante atentar para o fato de que, dentro desta conceituação, não há hierarquia entre regras e princípios, visto que ambas as categorias servem para designar normas que estão na Constituição, logo, em um mesmo plano hierárquico. O que não impede, todavia, que, ainda que situados em um mesmo patamar de hierarquia desempenhem funções distintas no ordenamento jurídico.
Nesse ponto, a Constituição passa a ser vista como um sistema aberto de princípios e regras, tendo como paradigma o estudo sobre a matéria feito por DWORKIN:
“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”21.
As regras, portanto, são aplicáveis sob a forma de tudo ou nada, “all or nothing”, significando que sua aplicação não admite meio termo. Caso se concretizem os fatos nela previstos, a regra incide e produz seus efeitos. A respeito cuida BARROSO:
“[...] Por exemplo: a cláusula constitucional que estabelece a aposentadoria compulsória por idade é uma regra. Quando o servidor completa setenta anos, deve passar à inatividade, sem que a aplicação do preceito comporte maior especulação. O mesmo se passa com a norma constitucional que prevê que a criação de uma autarquia depende de lei específica. O comando é objetivo e não dá margem a elaborações mais sofisticadas acerca de sua incidência. Uma regra somente deixará de incidir sobre a hipótese de fato que contempla se for inválida, se houver outra mais específica ou se não estiver em vigor. Sua aplicação se dá, predominantemente, mediante subsunção”22.
Já os princípios representam valores especialmente preconizados pelo ordenamento, sendo apresentados, normalmente, através de elevado grau de abertura. Esses valores protegidos em forma de princípios podem, e frequentemente o fazem, entrar em rota de colisão. Ocorre que, exatamente por conta dos objetivos que possuem, bem como pelas características que apresentam, como maior teor de abstração, por exemplo, a solução de um conflito entre princípios não pode ocorrer de forma semelhante a de um conflito entre regras. À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como o que ocorre entre a liberdade de expressão e o direito à privacidade. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação23. Ainda sobre as características dos princípios manifesta-se ALEXY:
“Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por isso, são mandados de otimização, caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito do juridicamente possível é determinado pelos princípios e regras opostas”24
Dessa forma, pode-se claramente perceber que uma colisão entre princípios não pode ser solucionada como se resolveria um conflito envolvendo regras. Para o caso destas últimas basta tão-somente o recurso aos critérios tradicionais de solução de conflitos normativos – hierárquico, cronológico e o da especialidade-, enquanto em relação aos princípios estes não podem ser postos em termos de tudo ou nada. A ponderação, critério utilizado para a aplicação dos princípios, busca estabelecer o grau de importância de cada um dos princípios contrapostos, visto que não se pode afirmar que exista qualquer critério que permita se afirmar a superioridade de um princípio sobre outro. Ainda sobre a dicotomia, ensina BARROSO:
“Pois bem: ultrapassada a fase de um certo deslumbramento com a redescoberta dos princípios como elementos normativos, o pensamento jurídico tem-se dedicado à elaboração teórica das dificuldades que sua interpretação e aplicação oferecem, tanto na determinação de seu conteúdo quanto na de sua eficácia. A ênfase que se tem dado à teoria dos princípios deve-se, sobretudo, ao fato de ser nova e de apresentar problemas ainda irresolvidos. O modelo tradicional, como já mencionado, foi concebido para a interpretação e aplicação de regras. É bem de ver, no entanto, que o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica – previsibilidade e objetividade das condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça no caso concreto”25.
Apesar das características e critérios distintivos acima apontados, a doutrina constitucional tem cada vez mais reconhecido que a distinção entre regras e princípios nem sempre é tão singela, seja partindo da segregação das regras ao critério do tudo ou nada – subsunção -, bem como da afirmação taxativa de que os princípios são sempre ponderados. Isto porque pode uma regra conter uma expressão de conteúdo aberto ou flexível, hipótese em que desempenhará papel semelhante ao dos princípios, permitindo ao intérprete integrar com subjetividade o comando normativo26. Como também chega-se a reconhecer ao núcleo de certos princípios conteúdo de regra, como faz BARCELLOS:
“Apesar disso, e embora seja possível identificar, de todas as normas constitucionais apresentadas, várias regras – como a que dispõe a respeito da educação fundamental obrigatória e gratuita -, boa parte delas assume a forma de princípios ou subprincípios, cuja característica, como já mencionado, é a indeterminação, maior ou menor, dos efeitos ou fins que pretendem atingir e/ou a multiplicidade dos meios capazes de realizá-los”27.
Diante de tais paradoxos, alguns autores pregam a superação da distinção acima apontada, como verificamos a partir da obra de ÁVILA:
“Essas ponderações têm por finalidade demonstrar que a diferença entre princípios e regras não está no fato de que as regras devam ser aplicadas no todo e os princípios só na medida máxima. Ambas as espécies de normas devem ser aplicadas de tal modo que seu conteúdo de dever-ser seja realizado totalmente. Tanto as regras quanto os princípios possuem o mesmo conteúdo de dever-ser. A única distinção é quanto à determinação da prescrição de conduta que resulta da sua interpretação: os princípios não determinam diretamente [...] a conduta a ser seguida, apenas estabelecem fins normativamente relevantes, cuja concretização depende mais intensamente de um ato institucional de aplicação que deverá encontrar o comportamento necessário à promoção do fim; as regras dependem de modo menos intenso de um ato institucional de aplicação nos casos normais, pois o comportamento já estava previsto frontalmente pela norma. [...] O ponto decisivo não é, portanto, a falta de ponderação na aplicação das regras, mas o tipo de ponderação que é feita e o modo como ela deverá ser validamente fundamentada”28.
Concordamos em parte com as idéias trazidas por Humberto Ávila, pois não nos parece que a distinção clássica entre as categorias em que se dividem as normas constitucionais – regras e princípios – resolva todas as possibilidades hermenêuticas do Texto Constitucional reduzindo as hipóteses de aplicação à subsunção de uma categoria e à ponderação de outra. No entanto, uma coisa é afirmar que as teorias de Dworkin e Alexy não contemplam todas as hipóteses interpretativas e, portanto, são insuficientes, outra completamente diferente é pregar o seu sepultamento. As características atribuídas às regras e aos princípios por esses autores respondem a boa parte das necessidades interpretativas concernentes à Constituição, razão pela qual não vemos motivo para sua reformulação. Todavia não nos prenderemos aqui a essa discussão, embora seja pertinente, por não ser este o tema central de nosso trabalho.
V. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O CONDICIONAMENTO DA INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO
A novidade das últimas décadas não está, propriamente, na existência de princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica. Os princípios, vindos dos textos religiosos, filosóficos ou jusnaturalistas, de longa data permeiam a realidade e o imaginário do Direito, de forma direta ou indireta. Na tradição judaico-cristã, colhe-se o mandamento de respeito ao próximo, princípio magno que atravessa os séculos e inspira um conjunto amplo de normas. Da filosofia grega origina-se o princípio da não-contradição, formulado por Aristóteles, que se tornou uma das leis fundamentais do pensamento: “Nada pode ser e não ser simultaneamente”, preceito subjacente à idéia de que o Direito não tolera antinomias. No direito romano pretendeu-se enunciar a síntese dos princípios básicos do Direito: “Viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu”. Os princípios, como se percebe, vêm de longe e desempenham papéis variados. O que há de singular na dogmática jurídica atual é o reconhecimento de sua normatividade29.
Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete. Na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata30.
VI. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, O MÍNIMO EXISTENCIAL E O ACESSO À JUSTIÇA COMO REQUISITO INDISPENSÁVEL AO SEU EXERCÍCIO
Este é, sem dúvida, um dos princípios que vem despontando no Brasil como um dos vetores das transformações por que vem passando o sistema jurídico e, consequentemente, um dos principais exemplos da moderna perspectiva principiológica que vem orientando a hermenêutica constitucional. A Constituição de 1988 mostra uma preocupação efetiva com as condições materiais de existência dos indivíduos, pressuposto de sua dignidade, dedicando-lhe considerável espaço no texto constitucional e impondo a todos os entes da Federação a responsabilidade comum de alcançar os objetivos a respeito do tema31. Embora se possa identificar dentre as normas constitucionais que se ocupam com a Dignidade da Pessoa Humana várias regras, como, por exemplo, a que impõe que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, grande parte dessas disposições constitucionais assume a forma de princípios ou subprincípios, cuja principal característica é o alto grau de indeterminação de seu conteúdo. Dessa forma, qual seria o objeto dessa norma principiológica que busca definir um espaço mínimo de dignidade a todo e qualquer indivíduo?
Não há muita controvérsia no que tange ao núcleo material do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que seria formado pelo chamado mínimo existencial, ou seja, um conjunto de valores e bens jurídicos minimamente necessários para que uma pessoa possa sobreviver dignamente. Aquém desse patamar, embora haja sobrevivência, não haveria dignidade32. A respeito, pronuncia-se BARCELLOS:
“A conclusão, portanto, é que há um núcleo de condições materiais que compõe a noção de dignidade de maneira tão fundamental que sua existência impõe-se como uma regra, um comando biunívoco, e não como um princípio. Ou seja: se tais condições não existirem, não há o que ponderar ou otimizar, ao modo dos princípios; a dignidade terá sido violada, da mesma forma como as regras o são. Para além desse núcleo, a norma mantém a sua natureza de princípio, estabelecendo fins relativamente indeterminados, que podem ser atingidos por meios diversos, dependendo das opções constitucionalmente legítimas do Legislativo e Executivo em cada momento histórico”33.
Na mesma linha, sustenta SARLET:
“Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á lhe negando a própria dignidade”34
Entretanto, em que pese não haver muita dúvida quanto à necessidade de se reconhecer um conjunto mínimo de valores a todo ser humano por sua simples existência no mundo, muito se discute quanto a que bens jurídicos estariam abarcados no conceito do mínimo existencial. Apesar da dificuldade em se delimitar o objeto da proteção mínima, alguns autores arriscam que o conteúdo do mínimo existencial incluiria renda mínima, saúde básica, educação fundamental e um elemento instrumental que seria o acesso à justiça, requisito de que passaremos a nos ocupar a partir de agora.
A presença do acesso à justiça no conteúdo do mínimo existencial deve ser encarada, a nosso ver, não como simples provocação da atividade judicante, mas como acesso a todas as possibilidades oferecidas pelo ordenamento para fins de interpretação da norma constitucional. Usufruir da plenitude da força normativa de um princípio é tão fundamental para a sobrevivência da sociedade quanto o são saúde básica ou educação fundamental. Acreditar que o acesso à justiça representa elemento de natureza puramente instrumental significa subverter inteiramente a relação hierárquica existente entre a Constituição e a ordem jurídica em geral. Tomemos como exemplo da argumentação aqui sustentada situação por nós vivenciada em nossa atividade diária como profissional da advocacia, em que uma regra processual acabou por preponderar em relação a um princípio constitucional. Recentemente o TRT da 19ª Região considerou um recurso deserto por conta de ter havido recolhimento a menor da ordem de R$ 4,00 (quatro reais) no depósito recursal35. Em que pese o depósito ter realmente sido feito a menor, a aplicação da pena de deserção no caso em tela guarda desproporcionalidade colossal em relação ao fato que lhe motivou. Explique-se por que. De início convém ressaltar que o processo do trabalho não é um ramo soberano do direito, em que pese ser autônomo. A noção de sistema jurídico advém justamente do fato de normas de diversos patamares e naturezas variadas coexistirem harmonicamente por possuírem um ponto em comum. Daí a noção de ordem no sistema jurídico, e, conseqüentemente, o surgimento do termo ordenamento, como já foi oportunamente registrado.
Destarte, a aplicação de uma norma jurídica deve acontecer de forma a que a espécie normativa a ser efetivada seja situada no contexto normativo em que está inserida, no intuito de não abalar os alicerces em que o sistema se ergue. Até mesmo porque o processo não é um fim em si mesmo, e sim meio de efetivar uma prestação de direito material. Não se deve, portanto, permitir que o direito material seja subjugado por uma nuance processual. Esta foi, inclusive, a preocupação do legislador constituinte, ao prever no Texto Constitucional o chamado Princípio da Inafastabilidade da Prestação Jurisdicional, expresso no art. 5º, XXXV, que dispõe: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
É bom que se frise que não está se pregando uma revolução jurídica. É preciso que o sistema estabeleça regras mínimas de admissibilidade de recursos, prazos para o exercício de direitos, etc. O que não se pode esquecer é que tais procedimentos têm uma finalidade maior do que a absolutização desses meios em si. Qual o objetivo do depósito recursal? Garantir o juízo. Será que 99,9% do valor depositado, como ocorreu no exemplo citado, não o faz? Além do que o próprio Código de Processo Civil, de aplicação subsidiária, reza em seu art. 511, § 2º, que o recurso somente será considerado deserto se o recorrente, uma vez intimado para complementar o valor do depósito, não o fizer. Nos autos não constou nenhuma intimação para tal fim.
A própria orientação jurisprudencial do TST sustenta que o recurso somente será considerado deserto se o valor que se deixou de recolher possuir expressão monetária à época da interposição. Qual a expressão monetária que representa R$ 4,33? Será que o INSS executa débitos de empregadores para com o instituto nesse valor? A resposta é não. Somente são executados pelo INSS valores superiores a R$ 29,00. No Direito Penal um crime que represente dano de R$ 4,33 é configurado como crime de bagatela. Qual a Fazenda Pública, seja Estadual, Federal ou Municipal que executaria um débito de R$ 4,33? Nenhuma. As Fazendas Públicas somente executam débitos superiores a R$ 1.500,00. Em resumo, R$ 4,33 não representam expressão monetária em ramo algum do nosso sistema jurídico, somente sendo relevante para o processo do trabalho? A desproporcionalidade foi tamanha que, ao se negar aplicação a um princípio constitucional, subjugado por uma regra processual, foi cerceado de forma irremediável o direito à defesa do recorrente. O caso em lume representou um conflito entre normas de diferentes patamares, a saber, uma disposição de natureza meramente processual contra um dos mais caros princípios constitucionais: o da razoabilidade/proporcionalidade.
O exemplo a partir do qual desenvolvemos o raciocínio acima exposto demonstra a resistência que muitos operadores do direito têm em reconhecer aos princípios sua plenitude normativa, interpretando arcaicamente, por exemplo, o disposto no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que reza que os princípios somente seriam utilizados quando houvesse lacuna legal36. Ao permitir que um princípio constitucional fosse posto de lado por uma regra processual, o tribunal em questão negou à parte que alegou desproporcionalidade entre o montante deixado de ser recolhido e a pena de deserção aplicada que a relação processual fosse alcançada por uma norma de maior hierarquia, derrotada por um dispositivo situado abaixo dela. No caso citado houve provocação jurisdicional, mas não se operou a interpretação plena e adequada da norma constitucional pertinente – Princípio da Razoabilidade -, razão pela qual entendemos que houve acesso ao poder judiciário, por conta da provocação da atividade jurisdicional, mas não acesso à justiça como elemento constitutivo da Dignidade da Pessoa Humana.
VII. CONCLUSÃO
Diante do que foi tratado no presente estudo, não restam dúvidas quanto às transformações por que vem passando o sistema jurídico e que devem estar presentes na atividade do intérprete. O status de norma jurídica alcançado pelos princípios constitucionais representa uma mudança profunda na atividade hermenêutica, notadamente no que tange à busca pelos sentidos que afloram das normas previstas na Constituição. A tarefa de interpretar o Texto Constitucional deixa de ser uma atividade puramente mecânica, de leitura de disposições que pretendiam esgotar as possibilidades interpretativas nas expressões contidas no texto legal, para converter-se em atividade criadora, responsável por reconhecer como sendo parte integrante do sistema valores que até então se apresentavam sob uma perspectiva eminentemente filosófica, sociológica ou ética.
Nesse novo contexto despontam como bases do sistema jurídico princípios constitucionais que, explícitos ou não, vão determinar os novos rumos da ordem jurídica, como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que vem sendo amplamente utilizado pela doutrina e pela jurisprudência como solução primeira, e não subsidiária, para as mais diversas situações jurídicas. Embora seu conteúdo seja difícil de ser delimitado, não se discute que deve incluir um conjunto mínimo de valores indispensáveis para a sobrevivência digna do indivíduo. Neste ponto, além dos bens jurídicos que incontroversamente fariam parte desse rol, tais como saúde, educação e renda mínima, entendemos que também estaria incluído o acesso à justiça, mas não como se costuma tratar, como uma mera provocação e atuação mecânica do Poder Judiciário, mas como a tarefa de proporcionar ao cidadão, para fins de sobrevivência digna, o acesso às possibilidades interpretativas que esse novo sistema jurídico oferece, a partir de valores reinantes na humanidade desde sempre e não restringir a atividade hermenêutica a uma exegese que já não responde de há muito aos anseios sociais.
1 Advogado militante. Diretor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus – Unidade Maceió. Especialista em Direito e Mestrando pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor de Direito Constitucional do CESMAC e FAL.
2 Observação registrada por Luís Roberto Barroso em sua Interpretação e Aplicação da Constituição. 2003, pp. 102.
3 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 2003, pp. 102.
4 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. 2002, pp. 31.
5 ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. 2002, pp.16.
6 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 2003, pp. 103.
7 Conceito trabalhado por Luís Roberto Barroso em sua obra Interpretação e Aplicação da Constituição, 2003, pp.104, citando Thomas Cooley em A Treatise on the constitucional limitations, 1890, pp.70.
8 No que tange à discussão sobre unidade da Constituição, Virgílio Afonso da Silva afirma que “[...] o chamado princípio da unidade da constituição parece em nada se diferenciar daquilo que há pelo menos século e meio se vem chamando de ‘interpretação sistemática’. Isso pode não o invalidar como idéia-guia para a interpretação constitucional, mas acaba com a pretensão de exclusividade e, mais além, com a pretensão de rompimento com a chamada interpretação jurídica clássica. O chamado princípio da unidade da constituição é, ao contrário, uma reafirmação de um dos cânones clássicos de interpretação e a confirmação de que ele também vale no âmbito constitucional”, em artigo intitulado Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico, in Interpretação Constitucional, 2005, pp. 127.
9 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 2003, pp. 105.
10 Sobre o tema vide J.J. Gomes Canotilho em seu Direito Constitucional, 1991, pp. 1096.
11 Classificação proposta por Luís Roberto Barroso em sua obra Interpretação e Aplicação da Constituição, 2003, pp.107.
12 A esse respeito, lembra Virgílio Afonso da Silva que “É – salvo engano – ponto pacífico que a interpretação das disposições constitucionais deve ser feita levando-se em consideração o todo constitucional, e não disposições isoladas”, em artigo intitulado Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico, in Interpretação Constitucional, 2005, pp. 127.
13 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 2003, pp.107.
14 Nessa linha trabalham Emmanuel Joseph Sieyès, na obra A Constituinte Burguesa – que é o terceiro Estado, 2003, pp. 118 e José Afonso da Silva em seu Curso de Direito Constitucional Positivo, 1998, pp.50.
15 Luís Roberto Barroso afirma que o juiz exerce competência discricionária sempre que se conceba que a norma admite mais de uma interpretação razoável. Utilizando o termo cunhado por Dworkin, o autor sustenta que tal ocorrerá diante dos chamados hard cases, casos difíceis, em que se abrem para o aplicador da lei várias possibilidades legais de solução para o caso concreto. A respeito afirma Dworkin que “quando uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição, o juiz tem, segundo tal teoria, o ‘poder discricionário’ para decidir o caso de uma maneira ou de outra”, na obra Levando os direitos a sério, 2002, pp. 127.
16 Classificação proposta por Luís Roberto Barroso em sua obra Interpretação e Aplicação da Constituição, 2003, pp.108.
17 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 2003, pp.110. Interessante se anotar que muitos autores não reconhecem as normas programáticas como dispositivos constitucionais dotados de eficácia por si só, necessitando para tanto de regulamentação posterior. Em memorável opinião contrária posiciona-se André Ramos Tavares, em seu Curso de Direito Constitucional, 2003, pp. 82 e José Afonso da Silva, em sua obra Aplicabilidade das normas constitucionais, 2001, pp.35.
18 Características apontadas por Michel Temer no livro Elementos de Direito Constitucional, 2003, pp. 23.
19 Terminologia empregada por Luís Roberto Barroso em Interpretação e Aplicação da Constituição, 2003, pp.112.
20 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro, in A Nova Interpretação Constitucional, 2003, pp. 30.
21 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, 2002, pp.39.
22 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro, in A Nova Interpretação Constitucional, 2003, pp. 30.
23 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro, in A Nova Interpretação Constitucional, 2003, pp. 31.
24 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales, 1993, pp.86.
25 BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História: A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro, in Interpretação Constitucional, 2005, pp. 281-282.
26 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro, in A Nova Interpretação Constitucional, 2003, pp. 34. Vide, ainda, Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, 2003, pp.27 e ss.
27 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, 2002, pp. 191.
28 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2004, pp.55.
29 BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História: A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro, in Interpretação Constitucional, 2005, pp. 281-282.
30 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro, in A Nova Interpretação Constitucional, 2003, pp. 34. Vide, ainda, Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, 2003, pp.27 e ss.
31 Vide Ana Paula de Barcellos, A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais.2002, pp.111.
32 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 2003, pp.335.
33 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, 2002, pp. 194.
34 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais.2001, pp. 87.
35 Reclamação Trabalhista n° 225/03, oriunda da 3ª Vara do Trabalho de Maceió.
36 “Art. 4º - Quando a lei for omissa, o intérprete se utilizará de analogia, costumes e princípios gerais de direito”.

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